A propaganda de Ano-Novo da Havaianas, “não comece 2026 com o pé direito… comece com os dois pés”, é, no limite, um exercício clássico de criatividade publicitária. Parte de um clichê popular, desloca seu sentido e o devolve ao público em forma de convite à ação, à autonomia e ao movimento. O texto fala de corpo, de atitude, de presença inteira no mundo: “dois pés na porta, na estrada, na jaca”. Não há ali pedido de voto, menção ideológica explícita, defesa programática ou ataque a qualquer grupo político.
Ainda assim, em poucos dias, o comercial foi convertido em escândalo político. O que era uma metáfora virou “mensagem subliminar”; o que era linguagem simbólica virou “posição ideológica”. O boicote, impulsionado por figuras da direita e amplificado nas redes, rapidamente contaminou o noticiário econômico, produzindo ruído suficiente para transformar um chinelo em pauta nacional.
Quando um comercial de sandálias vira “guerra cultural”, o problema não está na publicidade. Está na política, mais precisamente, na forma como ela vem sendo praticada: empobrecida de conteúdo, dependente de conflito permanente e viciada em atenção.
A engrenagem: transformar metáfora em ofensa, e ofensa em campanha
Nada disso acontece por acaso. Existe um método, já testado, repetido e comprovadamente eficaz, no marketing político digital contemporâneo. Ele opera em etapas bastante claras.
Primeiro, recorta-se um trecho que permita uma leitura literalista, simplificada e emocionalmente explosiva. No caso, a expressão “pé direito”, arrancada do campo simbólico e jogada no terreno da disputa ideológica.
Em seguida, atribui-se intenção ao emissor. Não importa o que o texto diz, mas o que se afirma que ele “quis dizer”. A campanha passa a ser rotulada como “posicionamento político”, mesmo sem qualquer evidência concreta no conteúdo publicitário.
O terceiro passo é a convocação da base. Não se trata, de fato, de prejudicar economicamente a marca, mas de criar um ritual público de pertencimento: quem boicota prova lealdade; quem não boicota é suspeito. O consumo vira identidade política.
Por fim, o conflito é amplificado com linguagem de torcida organizada. Compra vira traição. Crítica vira “lacração”. O debate desaparece, substituído por palavras de ordem fáceis de replicar, compartilhar e performar.
Nesse contexto, a ironia publicada pelo deputado Nikolas Ferreira, “Havaianas, nem todo mundo agora vai usar”, funciona menos como opinião individual e mais como sinal de largada. É curta, memeável, emocionalmente carregada e orienta o comportamento do grupo. Não busca convencer quem discorda; busca manter coesa a própria torcida.
E aqui está o ponto central: a política tratada como futebol é uma tecnologia de engajamento. Ela não depende de verdade factual, coerência discursiva ou profundidade argumentativa. Ela depende apenas de utilidade emocional. Se gera raiva, identidade e mobilização, cumpre sua função.
O truque da agenda: barulho em cima, votação lá embaixo
A pergunta inevitável é: por que investir tanta energia em um chinelo?
Porque polarização é uma das formas mais eficientes de deslocar atenção pública. Não é necessário afirmar, nem seria intelectualmente honesto, que houve um plano deliberado para usar a Havaianas como distração de uma pauta específica. Mas é impossível ignorar o padrão estrutural: enquanto controvérsias simbólicas inflamam redes sociais, temas complexos seguem tramitando com pouco escrutínio público.
No mesmo período em que a polêmica ganhava tração, o Congresso lidava com votações orçamentárias, créditos adicionais, negociações políticas e decisões de impacto direto sobre a vida econômica do país. Assuntos que exigem leitura, contexto, paciência e, sobretudo, disposição para entender processos.
A “cortina de fumaça”, portanto, não precisa ser conspiratória. Ela pode ser funcional. É muito mais simples incendiar a opinião pública com uma guerra identitária do que explicar orçamento, comissão, emenda parlamentar ou impacto fiscal. O escândalo simbólico age como uma pauta-parasita: suga atenção, ocupa o espaço do debate e empurra temas essenciais para o rodapé da agenda pública.
O boicote como performance (e a realidade como anticlímax)
A realidade, no entanto, costuma ser menos épica do que o discurso. Os dados de consumo indicaram lojas cheias, continuidade nas vendas e ausência de um efeito concreto e duradouro do boicote. O mercado financeiro reagiu com volatilidade pontual, típica de ruídos midiáticos, mas o comportamento do consumidor revelou algo importante: a maioria não participa dessa encenação.
Isso reforça a tese central: o boicote funcionou muito mais como performance política do que como ação econômica eficaz. Ele serve para manter a base mobilizada, indignada e permanentemente em alerta. Não necessariamente para atingir o alvo declarado.
Quem ganha quando a política vira torcida?
Ganha quem controla o roteiro do conflito. Porque torcida não pede prova, pede pertencimento. E pertencimento se constrói com inimigos simples, facilmente identificáveis. Hoje é uma marca de chinelos. Amanhã, um artista, um professor, uma palavra, um gesto.
O método se repete porque funciona. Ele reduz a política a reflexo, elimina a complexidade e transforma cidadãos em espectadores passionais de um jogo que nunca termina.
A maior ironia de toda essa história é que a campanha falava justamente de estar inteiro: “dois pés”, corpo presente, ação consciente. A reação fabricada produziu o oposto: um país andando manco, com um pé preso na indignação performática e o outro escorregando para longe do que realmente importa.
Se a democracia fosse um slogan de Ano-Novo, talvez fosse este: antes de brigar por chinelo, confira a pauta. Porque enquanto a arquibancada grita, alguém segue decidindo o jogo, em silêncio.
