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sexta-feira, 16 de maio de 2025

Fé, política e silêncios ensaiados no coração da Igreja

 

Poucos filmes contemporâneos têm coragem de adentrar os muros do Vaticano com a delicadeza de quem entende seu peso simbólico e institucional. Conclave (2024), dirigido por Edward Berger e protagonizado por um sutil e magnético Ralph Fiennes, não apenas o faz — como transforma o silêncio ritualístico da Igreja em terreno fértil para o suspense político. Mas, como toda boa narrativa de poder, o filme revela tanto quanto esconde. E é aí que mora sua força — e sua limitação.

Baseado no romance de Robert Harris, Conclave acompanha o cardeal Lawrence enquanto este supervisiona o processo de escolha do novo papa após a morte do pontífice. À primeira vista, trata-se de um thriller eclesiástico, quase um House of Cards entre colunas de mármore. Mas o que o filme realmente revela é o choque entre tradição e verdade, entre o peso da fé e os jogos de influência de uma instituição que, apesar de espiritual, é também profundamente política.

O mérito de Berger está em transformar um processo fechado e cerimonial — o conclave — em um espaço narrativo tenso, onde olhares valem mais que palavras e a liturgia esconde disputas internas. A cinematografia austera de Stéphane Fontaine contribui para esse clima claustrofóbico, e a trilha sonora de Volker Bertelmann acentua a sensação de urgência silenciosa que atravessa o filme.

Mas é Ralph Fiennes quem carrega o coração do enredo. Seu cardeal Lawrence é, ao mesmo tempo, servo fiel e sujeito em crise. E sua performance contida, quase litúrgica, expressa a complexidade de quem está diante de um sistema maior do que qualquer convicção pessoal. O elenco de apoio, com nomes como Stanley Tucci e Isabella Rossellini, reforça a densidade dramática, dando voz a diferentes facetas da hierarquia católica.

No entanto, Conclave também simplifica. Ao dramatizar alguns conflitos e moralizar escolhas com certo maniqueísmo, o filme perde a chance de mergulhar nas camadas mais espessas da Igreja — aquelas onde fé, cultura, política e poder se entrelaçam de forma inseparável. É um risco calculado, talvez necessário para manter o ritmo cinematográfico, mas que enfraquece parte da crítica possível.

Ainda assim, o filme acerta ao levantar uma pergunta que ecoa muito além das paredes do Vaticano: quem tem o direito de decidir o futuro espiritual de bilhões de pessoas? E com base em que critérios? O conclave, afinal, é também um espelho do nosso tempo: um ritual antigo tentando permanecer relevante em uma era de rupturas e incertezas.

Conclave é um filme necessário. Porque nos lembra que instituições, por mais sagradas que sejam, são feitas de pessoas — e pessoas, com todas as suas falhas e esperanças, também têm fé. Não é um filme sobre a Igreja. É um filme sobre o poder. E o silêncio.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Quando a repetição ofusca a maré da originalidade

O oceano já não chama com a mesma força. Oito anos depois do impacto cultural e emocional de Moana (2016), a Disney retorna com uma continuação que, embora visualmente esplêndida, parece presa ao formato que tanto busca renovar. Moana 2 é uma experiência agridoce: entrega técnica impecável, mas escorrega justamente no que fez do primeiro filme um marco — a autenticidade da jornada, a potência simbólica da protagonista e a originalidade narrativa.

Desta vez, Moana, agora mais velha e experiente, parte em uma nova missão para restaurar a ilha perdida de Motufetu. A premissa, à primeira vista, parece promissora. No entanto, a execução revela uma história que se aproxima mais da estrutura episódica de uma série do que de um longa-metragem coeso. Há momentos tocantes, sim, mas também muitos atalhos, diálogos apressados e desenvolvimentos pouco explorados. A aventura segue, mas sem o mesmo brilho da descoberta — parece que, desta vez, o oceano já conhece demais os caminhos.

Um dos maiores pontos de comparação inevitável está na trilha sonora. Em 2016, as músicas de Lin-Manuel Miranda foram responsáveis por transformar emoções em hinos geracionais. Quem não se arrepiou com “How Far I’ll Go”? Em Moana 2, as canções compostas por Abigail Barlow e Emily Bear são funcionais, mas não memoráveis. “Get Lost” é um destaque isolado em meio a uma trilha que não consegue, desta vez, contar a história por si só — uma falha significativa em um musical de animação.

Ainda assim, é preciso reconhecer os méritos da sequência. A animação atinge um novo nível de detalhamento, com paisagens que exaltam a cultura polinésia e cenas de tirar o fôlego. A representatividade continua sendo um trunfo importante, mantendo viva a valorização de um imaginário que por muito tempo foi apagado ou estereotipado no cinema mainstream. Nesse sentido, Moana 2 cumpre uma função simbólica poderosa: a de afirmar culturas ancestrais como protagonistas da própria narrativa.

Mas a pergunta que ecoa é: precisava de uma continuação? Ou melhor, essa continuação precisava ser feita assim? Ao seguir a lógica da franquia segura, a Disney parece ter escolhido o caminho menos arriscado — e, portanto, menos inventivo. Moana merecia uma nova jornada que ampliasse seu universo não só em geografia, mas em profundidade.

Moana 2 não é um fracasso, longe disso. É um filme bonito, bem-intencionado e tecnicamente admirável. Mas falta-lhe alma de travessia. Falta a surpresa da primeira vez. Falta a coragem de navegar onde a maré não leva por si só. Talvez seja hora de lembrar o que o oceano nos ensinou: que é preciso ousar sair do porto, mesmo que o horizonte pareça distante.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Entre blocos e bilheterias

 

Adaptar um jogo como Minecraft para o cinema é, ao mesmo tempo, uma tarefa ambiciosa e um desafio conceitual. Não se trata de um enredo clássico a ser traduzido para as telas, mas de um universo em aberto, onde a narrativa é criada pelo próprio jogador. Um Filme Minecraft (2025), dirigido por Jared Hess e estrelado por Jason Momoa e Jack Black, tenta contornar esse vácuo criativo com uma história genérica de heróis deslocados em busca do caminho de casa. O resultado? Um filme que diverte, mas pouco constrói — ao menos no plano narrativo.

Minecraft é, acima de tudo, um símbolo de liberdade. O jogador cria, destrói, imagina. É um espaço de autoria e expressão. O filme, por outro lado, recorre à velha fórmula hollywoodiana do grupo improvável que precisa aprender a trabalhar em equipe. A estética cúbica está ali, os mobs conhecidos também. Mas a alma do jogo — a experimentação, a ausência de roteiro, a magia da descoberta — se dilui em piadas fáceis e diálogos superficiais.

Jack Black, como Steve, entrega carisma e timing cômico, talvez o elemento mais genuinamente divertido do longa. Jason Momoa, em um papel mais contido do que de costume, cumpre a função de herói-relutante, mas sem grandes destaques. A química entre os personagens é funcional, mas o enredo não permite grandes mergulhos emocionais. E é aí que reside o maior problema: em um universo que poderia inspirar infinitas possibilidades, a história opta pela previsibilidade.

Ainda assim, Um Filme Minecraft cumpre seu papel comercial com louvor. Atinge o público infantojuvenil com um ritmo ágil e visual colorido, e arrecadou mais de 800 milhões de dólares mundialmente. Mas essa performance não deve ser confundida com profundidade. O sucesso de bilheteria não invalida a pergunta essencial: o que estamos contando, quando escolhemos contar histórias baseadas em produtos que são, por essência, sobre criação livre?

O filme poderia ter ido além, apostando em uma narrativa mais simbólica sobre criatividade, identidade ou até mesmo isolamento digital — temas que fazem parte da experiência Minecraft. Ao invés disso, optou pelo conforto de um roteiro enlatado que, embora divertido, esvazia o potencial transformador da obra original.

Um Filme Minecraft não é um fracasso — é um reflexo. Reflete a tendência atual do cinema em transformar tudo em franquia, tudo em IP explorável, tudo em produto vendável. E, nesse reflexo, cabe ao espectador decidir se está apenas sendo entretido… ou se está, mais uma vez, vendo uma boa ideia ser empacotada até perder sua força.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Das sombras do passado aos monstros clássicos


O cinema de terror não é só um gênero de sustos baratos e criaturas assustadoras. Ele é um reflexo da sociedade, um espelho dos nossos medos mais profundos e um termômetro cultural que acompanha (e muitas vezes antecipa) as inquietações do seu tempo. Desde os primeiros filmes mudos, como Nosferatu (1922) e O Gabinete do Dr. Caligari (1920), o terror usou sombras, distorções e silêncios para criar tensão e provocar o imaginário. Nessa época, a galera já saía do cinema olhando para os cantos escuros da rua.

Nos anos 1930, Hollywood percebeu que criaturas como Drácula, Frankenstein e o Homem Lobo vendiam ingressos como água. Não eram apenas monstros aleatórios, mas metáforas para os medos da ciência descontrolada e da repressão social. Quando os anos 1950 chegaram, a paranoia da Guerra Fria fez com que os filmes refletissem o medo do outro, da invasão e do desconhecido. Vampiros de Almas (1956) abordava o medo da manipulação governamental, enquanto Godzilla (1954) personificava o trauma nuclear. Medo da bomba atômica? Nada como um lagarto gigante destruindo cidades para dar o recado.

Na década de 1960, o terror ficou mais psicológico e pessoal. Hitchcock, em Psicose (1960), mostrou que o verdadeiro horror pode estar na pessoa ao lado, não em castelos mal-assombrados. Em A Noite dos Mortos-Vivos (1968), George Romero fez muito mais do que popularizar zumbis devoradores de carne humana; ele criticou a sociedade americana, abordou racismo e a hipocrisia social sem precisar dar um discurso. Já nos anos 1970, o medo entrou dentro de casa: O Exorcista (1973) e O Iluminado (1980) mostraram que, às vezes, os piores horrores não estão lá fora, mas na nossa própria mente e família.

Nos anos 1980, o gênero se jogou de vez na violência e no exagero visual. Os "slashers" dominaram as telas, com psicopatas icônicos como Freddy Krueger, Jason Voorhees e Michael Myers. Cada um com sua assinatura: facão, luvas afiadas, perseguições infinitas. O Brasil também teve seu momento de brilho com José Mojica Marins, o Zé do Caixão, que trouxe um terror cheio de misticismo e um toque bem brasileiro ao gênero. Já os anos 1990 viram o terror se autoironizar: Pânico (1996) fez piada com os clichês, e os espectadores adoraram ver os próprios tropos sendo questionados na tela.

Chegando aos anos 2000, a tecnologia entrou em cena, e os filmes de terror decidiram brincar com isso. O found footage (A Bruxa de Blair e Atividade Paranormal) colocou o público dentro do horror, como se tudo estivesse realmente acontecendo. E olha que funcionou: Atividade Paranormal custou só US$ 15 mil e arrecadou cerca de US$ 194,2 milhões. Se isso não é terror, não sei o que é. Sem falar nas franquias como O Exorcista e Invocação do Mal, que continuam rendendo bilhões.

Nos últimos anos, o terror ficou ainda mais sofisticado. Saiu da simplicidade dos sustos fáceis e começou a explorar camadas mais profundas, como racismo, luto e trauma. Corra! (2017) expôs o racismo estrutural, O Babadook (2014) e Hereditário (2018) usaram o horror para falar de saúde mental, e Midsommar (2019) mostrou que até um retiro espiritual pode ser assustador. E o público respondeu: M3GAN (2023) e Sobrenatural: A Porta Vermelha (2023) arrecadaram juntos mais de US$ 360 milhões globalmente.

O terror moderno é um gênero que se recusa a morrer (sim, como os vilões de filme slasher). Ele é uma máquina de bilheteria e uma plataforma poderosa para discussões sociais. Ele nos assusta, nos faz pensar e, acima de tudo, nunca sai de moda. O medo sempre se reinventa, porque, no fundo, amamos sentir aquele frio na espinha. E se você acha que não, tente dormir depois de ver um bom filme de terror.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

O olhar que enxergou o Brasil além das telas


O Brasil perdeu um de seus maiores contadores de histórias. Cacá Diegues, mestre do Cinema Novo e arquiteto de imagens que moldaram o imaginário nacional, nos deixou. Sua partida não é apenas o adeus a um cineasta. É o encerramento de um capítulo vibrante do cinema que ousou mostrar o Brasil de verdade — nu, múltiplo, contraditório e, acima de tudo, humano.

Em tempos de narrativas plastificadas e realidades filtradas, Diegues foi sempre o artista da verdade. De Ganga Zumba (1964) a Bye Bye Brasil (1980), ele nos levou ao sertão, às favelas, às estradas poeirentas, revelando um país que muitos queriam esconder. Seu olhar não romantizava a pobreza, tampouco a explorava. Ele filmava com respeito, empatia e uma rara capacidade de transformar vidas invisíveis em protagonistas.

Quem assistiu Xica da Silva (1976) jamais esqueceu Zezé Motta em sua potência e liberdade. Não era apenas um filme sobre o Brasil colonial; era sobre as mulheres negras que resistem e reinventam o futuro, ontem e hoje. Diegues entendia que o cinema não é só entretenimento — é memória, é identidade, é denúncia e, sobretudo, é afeto.

Mas Cacá não ficou preso aos ícones do passado. Ele olhava para frente. Em 5x Favela – Agora por Nós Mesmos (2010), abriu espaço para que jovens cineastas das favelas contassem suas próprias histórias. Foi ali que ele reafirmou sua crença: o futuro do audiovisual brasileiro pertence àqueles que conhecem as ruas, as vielas e os sonhos que nascem onde muitos só enxergam dificuldades.

Como publicitária, sei que a comunicação eficaz nasce do encontro entre verdade e emoção. E foi isso que Cacá Diegues fez como ninguém. Ele comunicou o Brasil para os brasileiros. Não aquele Brasil das vitrines ou dos comerciais polidos, mas o Brasil pulsante, miscigenado, que ri, chora e resiste.

Hoje, ficamos órfãos de sua câmera, mas herdamos seu legado. Um legado que nos ensina que contar histórias é um ato de coragem. Que dar voz a quem nunca foi ouvido é um dever. Que o cinema — e a comunicação como um todo — só se justificam quando se colocam a serviço da vida real.

Cacá partiu, mas sua lente permanece. Ela está nas mãos de cada jovem cineasta da periferia, em cada estudante que se vê pela primeira vez na tela, em cada publicitário que ousa fugir do clichê para se conectar de verdade com o povo.

Porque, no fundo, o que Cacá sempre nos lembrou é que a maior história que temos a contar é a nossa. E essa, ninguém pode calar.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

O impacto do Oscar na valorização da cultura brasileira

A indicação de Fernanda Torres ao Oscar de Melhor Atriz pelo filme "Ainda Estou Aqui", dirigido por Walter Salles, é um daqueles momentos que fazem a gente parar e se orgulhar do que o Brasil tem a oferecer. Não é apenas sobre um prêmio ou reconhecimento individual, mas sobre como uma premiação como o Oscar pode abrir portas para o Brasil no cenário mundial e mostrar ao mundo quem somos, nossa cultura e nossas histórias.

Premiações internacionais como o Oscar são grandes vitrines. Elas colocam nossa arte no radar global, despertando o interesse de audiências de outros países e mostrando que o Brasil também sabe contar histórias que emocionam e fazem a diferença. Quando um filme brasileiro é indicado, ele leva junto a riqueza das nossas narrativas e o talento dos nossos artistas, além de abrir espaço para futuras produções e parcerias internacionais.

Mas o impacto vai além da visibilidade lá fora. Aqui dentro, uma indicação como essa ajuda a combater aquela velha "síndrome de vira-lata" que muitos brasileiros ainda têm. Durante muito tempo, nossa produção cultural foi vista como inferior ou menos importante, especialmente quando comparada à de países como os Estados Unidos. Uma nomeação ao Oscar nos faz repensar isso. Mostra que nosso cinema tem qualidade, que nossos artistas são incríveis e que podemos, sim, estar entre os melhores do mundo.

Essa conquista também inspira as pessoas a olharem para nossa própria cultura com mais carinho e respeito. Ela reforça o orgulho de ser brasileiro e valoriza o que produzimos de melhor. É exatamente um momento que eleva nossa autoestima e nos lembra do nosso valor.

Por isso, é importante destacar que parcerias entre o setor privado e a indústria cinematográfica não apenas garantem os recursos necessários, mas também estimulam a inovação e a criação de conteúdos de alto nível. O envolvimento de marcas e empresas em projetos culturais cria uma rede de colaboração essencial para que mais histórias brasileiras cheguem ao público, dentro e fora do país.

Claro que, para alcançarmos esse nível de reconhecimento, precisamos de um esforço conjunto. Enquanto as políticas públicas, como a Lei Rouanet e o Fundo Setorial do Audiovisual, garantem acesso a recursos fundamentais, o investimento da iniciativa privada complementa e amplia as possibilidades de realização. É essa parceria entre governo, setor privado e artistas que pode garantir um futuro mais sólido e promissor para a cultura brasileira.

Mais do que um troféu, uma indicação ao Oscar é uma oportunidade de mostrar quem somos, de abrir espaço para nossas vozes e de fortalecer nossa identidade cultural. É um lembrete de que o Brasil tem muito a oferecer e de que precisamos valorizar isso todos os dias. Que venham mais indicações, mais aplausos e mais orgulho de ser brasileiro!


quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

O impacto de "Ainda Estou Aqui" na preservação histórica e nos debates sobre justiça social

 

No panorama contemporâneo de revisão histórica e reconfiguração das democracias, o cinema emerge como uma ferramenta central na construção e preservação das memórias coletivas. "Ainda Estou Aqui", dirigido por Walter Salles, apresenta-se como uma obra singular que transcende o plano narrativo pessoal para se constituir como um marco no debate sobre os horrores da ditadura militar brasileira e suas repercussões contemporâneas.

A direção de Salles alia rigor técnico a uma profunda sensibilidade narrativa. Os planos fechados, usados de maneira quase claustrofóbica, revelam a complexidade emocional de Eunice Paiva, interpretada com brilhantismo por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. A cinematografia de Adrian Teijido sublinha esse tom intimista com uma paleta de cores frias e tons desbotados, criando um contraste entre a opressão da ditadura e a resistência silenciosa dos indivíduos. A montagem de Affonso Gonçalves estrutura o filme em um formato não-linear, alternando entre momentos de tensão histórica e reflexões introspectivas, conferindo à narrativa um dinamismo que estimula a interpretação crítica.

O roteiro, premiado no Festival de Veneza, reflete um equilíbrio raro entre densidade emocional e exatidão histórica. Murilo Hauser e Heitor Lorega exploram com profundidade temas como memória, resiliência e justiça, mantendo a integridade do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva enquanto adaptam a narrativa para as especificidades da linguagem cinematográfica. Os diálogos, densos e sugestivos, evitam didatismos e colocam o espectador em contato direto com os dilemas morais e afetivos que atravessam os personagens.

As interpretações de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro transcendem o campo da atuação, configurando-se como registros históricos de um momento político. Enquanto Torres incorpora a jovem Eunice com uma energia que reflete o enfrentamento das adversidades impostas pelo regime, Montenegro, como a Eunice madura, oferece uma atuação introspectiva e profundamente simbólica, especialmente nas cenas que lidam com a perda de memória provocada pelo Alzheimer. Selton Mello, no papel de Rubens Paiva, confere humanidade a uma figura histórica central, mesmo com participação limitada, reforçando a força do filme como um tributo às vítimas da repressão.

“Ainda Estou Aqui” não é apenas uma obra cinematográfica; é um manifesto político e histórico. Seu reconhecimento em premiações internacionais, como o Globo de Ouro e o Festival de Veneza, demonstra a capacidade do cinema brasileiro de universalizar questões locais e inserir-se em debates globais sobre memória, justiça e resistência. O prêmio de Melhor Roteiro, em particular, reflete a sofisticação do projeto em articular narrativa e estética de forma indissociável.

Do ponto de vista histórico, o filme é uma contribuição fundamental para a revisão crítica do período ditatorial brasileiro. Ao colocar em destaque a luta de Eunice Paiva para preservar a memória de Rubens Paiva, a obra denuncia a impunidade que ainda permeia a história recente do país e reforça a necessidade de manter viva a memória como elemento essencial para a consolidação democrática. Walter Salles define o filme como uma "tentativa de entender por que a democracia é vital", um objetivo que adquire urgência em contextos marcados pela desinformação e polarização política.

 “Ainda Estou Aqui” transcende o entretenimento ao se constituir como um espaço de reflexão e questionamento. É um testemunho histórico que confronta a indiferença, uma peça de arte que celebra a resiliência e uma declaração política que reivindica a memória como direito coletivo. Em uma sociedade em que a justiça frequentemente falha em reconstituir verdades, o filme reafirma o papel do cinema como guardião da história e promotor de um futuro mais ético e inclusivo.

Danielle Leduc - coordenadora do curso de Publicidade e Propaganda da AEMS. Publicitária formada na Universidade Católica de Pelotas e especialista em Marketing, Estratégia e Inovação pelo Centro Universitário Internacional Uninter.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Barbie: muito além do cor-de-rosa

Finalmente, o tão aguardado live-action da Barbie dirigido por Greta Gerwig chegou aos cinemas, e a espera valeu a pena. O filme, que antes mesmo de sua estreia já era um fenômeno cultural, vai muito além das expectativas e apresenta uma abordagem surpreendente, repleta de reflexões e críticas sociais que nos convidam a repensar nossa própria visão de mundo e a influência da cultura pop na construção de estereótipos de gênero.

Ao contrário do que muitos poderiam esperar, "Barbie" não é apenas uma história cor-de-rosa sobre uma boneca sorridente. A diretora Greta Gerwig nos presenteia com uma Barbie questionadora e humana, que enfrenta dilemas sobre sua própria identidade e aceitação. Ela nos mostra que a boneca vai muito além dos padrões de beleza inatingíveis e representa uma crítica ao ideal de perfeição imposto pelo mundo masculino.

O filme nos leva a uma jornada fascinante entre o mundo da imaginação e a realidade, subvertendo estereótipos e quebrando paradigmas em ambos os universos. Gerwig habilmente tece uma teia de reflexões sobre o patriarcado, a desigualdade de gênero e a busca incessante pela perfeição. Ao acompanhar Barbie e Ken (interpretado por Ryan Gosling) em sua aventura, somos confrontados com críticas sociais sagazes que nos fazem questionar nossa própria realidade e o mundo em que vivemos.

A questão da representatividade também está presente no filme. Barbie se depara com as limitações impostas pelo seu próprio universo cor-de-rosa, refletindo as limitações que nossa própria sociedade impõe a certos grupos. O filme nos convida a refletir sobre a responsabilidade da indústria do entretenimento em relação à diversidade e inclusão. A Mattel, patrocinadora do filme, também é alvo de críticas, pois, embora crie bonecas para as fantasias femininas, tem sua alta cúpula dominada por homens.

"Barbie" é uma jornada que transcende as fronteiras da fantasia infantil e é um convite para adultos repensarem sua relação com a cultura pop e sua influência na construção de estereótipos de gênero. É uma oportunidade para repensarmos o significado da beleza e da identidade autêntica. O filme nos desafia a libertar-nos das amarras impostas e a abraçar a diversidade que torna cada um de nós único.

Greta Gerwig acerta em cheio com sua abordagem ousada e reflexiva. "Barbie" é muito mais do que uma viagem ao mundo cor-de-rosa da fantasia, é um universo de reflexões e críticas que moldam nossas percepções e nos fazem ver além dos estereótipos. É uma mensagem poderosa sobre a verdadeira beleza, que está na singularidade de cada indivíduo. Seja como Barbie ou Ken, vamos além das aparências e, quem sabe, encontraremos um mundo muito mais vibrante e colorido do que jamais imaginamos.