No panorama contemporâneo de revisão histórica e reconfiguração das democracias, o cinema emerge como uma ferramenta central na construção e preservação das memórias coletivas. "Ainda Estou Aqui", dirigido por Walter Salles, apresenta-se como uma obra singular que transcende o plano narrativo pessoal para se constituir como um marco no debate sobre os horrores da ditadura militar brasileira e suas repercussões contemporâneas.
A direção de Salles alia rigor técnico a uma profunda
sensibilidade narrativa. Os planos fechados, usados de maneira quase
claustrofóbica, revelam a complexidade emocional de Eunice Paiva, interpretada
com brilhantismo por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. A cinematografia de
Adrian Teijido sublinha esse tom intimista com uma paleta de cores frias e tons
desbotados, criando um contraste entre a opressão da ditadura e a resistência
silenciosa dos indivíduos. A montagem de Affonso Gonçalves estrutura o filme em
um formato não-linear, alternando entre momentos de tensão histórica e
reflexões introspectivas, conferindo à narrativa um dinamismo que estimula a
interpretação crítica.
O roteiro, premiado no Festival de Veneza, reflete um
equilíbrio raro entre densidade emocional e exatidão histórica. Murilo Hauser e
Heitor Lorega exploram com profundidade temas como memória, resiliência e
justiça, mantendo a integridade do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva
enquanto adaptam a narrativa para as especificidades da linguagem
cinematográfica. Os diálogos, densos e sugestivos, evitam didatismos e colocam
o espectador em contato direto com os dilemas morais e afetivos que atravessam
os personagens.
As interpretações de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro
transcendem o campo da atuação, configurando-se como registros históricos de um
momento político. Enquanto Torres incorpora a jovem Eunice com uma energia que
reflete o enfrentamento das adversidades impostas pelo regime, Montenegro, como
a Eunice madura, oferece uma atuação introspectiva e profundamente simbólica,
especialmente nas cenas que lidam com a perda de memória provocada pelo
Alzheimer. Selton Mello, no papel de Rubens Paiva, confere humanidade a uma
figura histórica central, mesmo com participação limitada, reforçando a força
do filme como um tributo às vítimas da repressão.
“Ainda Estou Aqui” não é apenas uma obra cinematográfica; é
um manifesto político e histórico. Seu reconhecimento em premiações
internacionais, como o Globo de Ouro e o Festival de Veneza, demonstra a
capacidade do cinema brasileiro de universalizar questões locais e inserir-se
em debates globais sobre memória, justiça e resistência. O prêmio de Melhor
Roteiro, em particular, reflete a sofisticação do projeto em articular
narrativa e estética de forma indissociável.
Do ponto de vista histórico, o filme é uma contribuição
fundamental para a revisão crítica do período ditatorial brasileiro. Ao colocar
em destaque a luta de Eunice Paiva para preservar a memória de Rubens Paiva, a
obra denuncia a impunidade que ainda permeia a história recente do país e
reforça a necessidade de manter viva a memória como elemento essencial para a
consolidação democrática. Walter Salles define o filme como uma "tentativa
de entender por que a democracia é vital", um objetivo que adquire
urgência em contextos marcados pela desinformação e polarização política.
“Ainda Estou Aqui”
transcende o entretenimento ao se constituir como um espaço de reflexão e
questionamento. É um testemunho histórico que confronta a indiferença, uma peça
de arte que celebra a resiliência e uma declaração política que reivindica a
memória como direito coletivo. Em uma sociedade em que a justiça frequentemente
falha em reconstituir verdades, o filme reafirma o papel do cinema como
guardião da história e promotor de um futuro mais ético e inclusivo.
Danielle Leduc - coordenadora do curso de
Publicidade e Propaganda da AEMS. Publicitária formada na Universidade Católica
de Pelotas e especialista em Marketing, Estratégia e Inovação pelo Centro
Universitário Internacional Uninter.
