domingo, 4 de maio de 2025

Uma voz de carne e osso no altar da humanidade

 

A morte de Papa Francisco marca o fim de um papado que não se conteve nos muros do Vaticano. Sua liderança, mais do que institucional, foi humana — e por isso, profundamente transformadora. Se, por séculos, a figura papal foi símbolo de autoridade dogmática e hierárquica, Jorge Mario Bergoglio deslocou o centro de gravidade da fé católica para o campo do cotidiano, da escuta e da misericórdia. E esse deslocamento incomodou, mas também curou.

Francisco não foi o primeiro papa a falar de justiça social, mas foi o primeiro em muito tempo a falar como alguém que a sentiu na pele. Seu discurso não vinha do púlpito — vinha da rua. Suas palavras, mesmo quando escritas em linguagem oficial, chegavam ao mundo com a simplicidade de um vizinho que aconselha, de um avô que acolhe, de um amigo que não julga antes de entender. Seu famoso “Quem sou eu para julgar?”, ao se referir a pessoas LGBTQIA+, não foi apenas uma frase — foi um marco linguístico, político e espiritual na história recente da Igreja.

Diferentemente de João Paulo II, cuja eloquência midiática sustentou um papado profundamente conservador, e de Bento XVI, cujo academicismo isolou sua voz em um tempo que clamava por acessibilidade, Francisco trouxe a dúvida para o centro da santidade. E isso o aproximou de muitos — e o afastou de outros. Sua fé não era a da infalibilidade: era a da escuta, da tentativa, da contradição humana. Por isso, tantos discursos seus reverberaram fora do universo religioso, tocando pessoas que não se consideram católicas, mas que encontraram ali algo raro: compaixão estruturada como prática política.

Seus posicionamentos sobre o meio ambiente, os migrantes, os pobres e a economia predatória colocaram a Igreja em rota de colisão com os interesses mais poderosos do mundo. Ele não apenas apontava erros estruturais — ele nomeava a omissão como pecado coletivo. E ao fazer isso, humanizou não só os “maus comportamentos”, que deixou de demonizar, mas também os “bons”, que deixou de romantizar. Amar o próximo, para Francisco, nunca foi um mandamento abstrato — foi ação. E isso fez da ética cristã algo radicalmente atual.

A crítica a sua postura existe — e deve existir. Houve omissões, recuos, silêncios. Sua tentativa de reformar a Cúria encontrou resistência feroz. E muitos temas — como a ordenação de mulheres, o aborto e o celibato — permaneceram intocados ou apenas sugeridos em sutilezas. Mas ainda assim, seu maior feito talvez tenha sido lembrar que o papa é um ser humano, e não um dogma vestido de branco.

Ao contrário de papados que pareciam inatingíveis, Francisco era visivelmente tocado pelas dores do mundo. Chorava. Tremia. Cambaleava. E nesse gesto, o gesto de alguém que não tem todas as respostas, ele nos ensinou que a fé não é sobre perfeição — é sobre presença. Sobre estar ali, junto. Mesmo quando o outro não pensa, ama ou crê como você.

Papa Francisco nos mostrou que é possível ser líder sem ser autoritário, ser espiritual sem ser alienado, ser firme sem ser rígido. Seu legado, mais do que doutrinal, é existencial. E por isso, continuará ecoando muito além da cátedra de Pedro. Onde houver alguém escolhendo o amor antes do julgamento, a escuta antes do grito, o gesto antes do dogma — ali, sua voz ainda viverá.