A publicidade brasileira entrou, definitivamente, na fase em que “usar IA” deixou de ser diferencial e passou a ser obrigação operacional. Dados recentes da Associação Brasileira das Empresas de Software mostram que o Brasil lidera os investimentos em TI e que a inteligência artificial é uma das frentes que mais puxam o crescimento do setor em 2024 e 2025, com projeção de alta de 9,5% e gasto de US$ 58,6 bilhões em 2024 (ABES, 2025). Isso significa que o ambiente empresarial, inclusive o publicitário, já tem infraestrutura e orçamento para rodar campanhas, testar criativos, segmentar públicos e analisar comportamento em tempo real com apoio de algoritmos.
O ponto é que a publicidade não lida apenas com eficiência: ela lida com sentido. E aí a IA começa a tensionar o campo. A pesquisa “O futuro das agências – 2ª ed.”, da KPMG, feita com agências brasileiras, mostra que as ferramentas mais adotadas são as de mensuração de resultados (35%) e inteligência de dados (33%), mantendo a IA no centro da relação com o cliente e da prova de performance (KPMG, 2024). Isso é ótimo para quem precisa justificar fee e mídia, mas pode levar as equipes a produzirem comunicação cada vez mais guiada pelo que o algoritmo “pede”, e nem sempre pelo que a marca deveria dizer. Quando toda campanha nasce de dashboards, corre-se o risco de cair naquilo que chamo de criatividade de repetição: formatos que funcionam, mas não inovam.
Ao mesmo tempo, estudos de ética em IA aplicados ao marketing no Brasil têm alertado para algo que o mercado costuma empurrar para depois: IA não é neutra. O trabalho de Panicachi e Cohen sobre limites éticos da IA em marketing mostra que a tecnologia amplia poder de segmentação, mas também amplia assimetrias de informação, podendo expor públicos vulneráveis a anúncios mais agressivos (PANICACHI; COHEN, 2024). O NetLab/UFRJ vem documentando, desde 2024, o uso de anúncios com IA e deepfakes de políticos e celebridades em golpes digitais, o que deixa claro que o problema já chegou à publicidade, não está na ficção (NETLAB/UFRJ, 2024; 2025). Se a IA é capaz de gerar anúncios persuasivos em segundos, ela também é capaz de espalhar desinformação publicitária com a mesma velocidade, e isso volta como risco reputacional para marcas, agências e plataformas.
Por isso, quando discutimos IA em publicidade e propaganda, não basta falar de produtividade. É preciso falar de governança de criação. Quem assina o anúncio gerado por IA? Quem responde se ele usar imagem de pessoa pública sem consentimento? Quem garante que o conjunto de dados que treinou o modelo não carrega estereótipos de gênero, raça ou classe que, em publicidade, se transformam em reforço de desigualdades? Antonio Carlos Morato, em depoimento na USP, já havia sinalizado esse ponto: publicidade é atividade regida por responsabilidade social; a entrada da IA não suspende essa responsabilidade (MORATO, 2023).
Do ponto de vista formativo, isso nos leva a um diagnóstico incômodo: cursos de Publicidade e Propaganda que ficam apenas em criação, redação e mídia sem IA vão formar profissionais ultrapassados. Mas cursos que entregam só ferramenta, sem sociologia da comunicação, sem ética da imagem, sem direito digital e sem inteligência de dados, vão formar operadores acríticos, gente que aperta botão, mas não decide se deve apertar. A melhor resposta está no meio: faculdades presenciais, com projeto pedagógico atualizado, conseguem articular laboratório, cliente real, uso de IA generativa e debate ético em sala, algo muito mais difícil de sustentar em formações rápidas e exclusivamente remotas.
Para o mercado, o recado é direto: IA não é atalho para demitir criativo, é alavanca para reposicionar o criativo como curador. Em vez de partir de uma página em branco, o redator, o diretor de arte e o planner passam a partir de 20 variações geradas por IA e escolhem, combinam, rescrevem, adaptam ao tom da marca, filtram o que é enviesado e o que é juridicamente inseguro. Isso aumenta o valor do profissional humano, não o reduz. O que reduz o valor é usar IA como se fosse estagiário infinito e gratuito.
Há ainda uma dimensão de imagem do setor. Se a publicidade brasileira quer continuar na lista das mais premiadas e influentes, não pode aceitar que modelos de IA gerem campanhas visualmente iguais às de outros países, com banco de estilos repetido e prompts genéricos. IA sem direção artística vira produção pasteurizada. IA com direção artística vira aceleração do estilo brasileiro, da narrativa local, do humor nosso, do repertório regional. É aqui que a universidade pública e privada podem fazer diferença: treinando gente que entende tanto de Lévi-Strauss quanto de ChatGPT, tanto de Conar quanto de Midjourney, tanto de recepção de público quanto de clusterização de dados.
Portanto, a IA já venceu tecnicamente, ela funciona, entrega, vende. O que ainda não venceu é a governança da IA na publicidade brasileira. E governança, nesse caso, passa por três verbos: explicitar (dizer quando o conteúdo foi gerado por IA), auditar (conferir se há vieses, ilegalidades e violações de imagem) e educar (formar profissionais capazes de discutir o que fazem). Se fizermos isso, teremos uma publicidade mais inteligente não porque usa IA, mas porque sabe por que está usando.
