A revolução trazida pela inteligência artificial não se limita à automação de tarefas; ela toca o núcleo simbólico da publicidade: a criação. Campanhas, slogans e peças que antes dependiam exclusivamente da sensibilidade humana hoje podem ser concebidas por ferramentas generativas capazes de escrever textos, sugerir paletas de cor, criar imagens ou planejar anúncios. A dúvida inevitável surge: quem é o autor quando a IA participa da criação publicitária?
Durante décadas, a autoria publicitária foi entendida como trabalho coletivo e intelectual, mas sempre humano. Diretores de arte, redatores e estrategistas assinavam criações que uniam emoção, técnica e contexto cultural. Com o avanço da IA, o processo criativo passa a ser mediado por sistemas que aprendem padrões estéticos e semânticos a partir de milhões de exemplos. Segundo o Relatório Global de Inteligência Artificial 2025 da Deloitte Insights, cerca de 64% das agências já utilizam alguma forma de IA em suas rotinas criativas, especialmente para roteiros e campanhas digitais. O software deixou de ser apenas ferramenta e tornou-se coautor invisível.
No entanto, a IA não cria a partir do vazio. Ela reorganiza dados, combina linguagens e responde a comandos. A originalidade ainda depende da intenção humana, do publicitário que formula o briefing, escreve o prompt e interpreta o resultado. Sem esse direcionamento, a IA apenas reproduz o senso comum presente em seu treinamento. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, 2024) reforça que obras geradas unicamente por máquinas não podem ser registradas como criações originais, pois carecem de elemento essencial: a intenção autoral. Na prática, isso significa que, mesmo quando a máquina participa, a autoria ética e legal ainda pertence ao humano que a orienta.
O problema é que, na cultura contemporânea da pressa e da produtividade, esse limite tende a se embaralhar. Há quem defenda que se a máquina escreve um texto publicitário inteiro, com base em prompts genéricos, ela seria uma espécie de “autora algorítmica”. Outros argumentam que o humano continua sendo o criador, já que decide o contexto e o propósito da mensagem. Essa tensão redefine o conceito de autoria, deslocando-o da figura do “gênio criador” para a de curador cognitivo, aquele que combina inteligência humana e artificial de modo consciente e responsável.
Na prática publicitária, esse deslocamento já é perceptível. O publicitário do século XXI não apenas cria, mas programa, conduz e interpreta sistemas de IA. Ele deve entender linguagem de máquina, semântica de dados e implicações éticas da automação. A IA amplia a potência da criação, mas também desafia os limites da autoria e da propriedade intelectual. Em um ambiente em que campanhas podem ser geradas em segundos, o diferencial não será mais a velocidade, e sim a intenção estética e narrativa que o humano imprime sobre o algoritmo.
Esse novo paradigma também exige que as faculdades presenciais de Publicidade e Propaganda se reposicionem. Não basta ensinar softwares; é necessário formar pensadores capazes de compreender as implicações culturais e filosóficas da IA. Discutir autoria na era digital significa refletir sobre responsabilidade, ética e autenticidade — temas que só o ambiente acadêmico, com sua densidade crítica e interdisciplinar, consegue oferecer. A convivência entre teoria e prática, laboratório e debate, é o que permite ao estudante entender que a tecnologia é meio, não fim.
Em síntese, a IA não anula o autor, ela o desafia. A autoria publicitária do futuro será híbrida, compartilhada entre humano e máquina, mas ainda orientada pela visão humana sobre o mundo. O papel do publicitário, portanto, é permanecer como diretor criativo da inteligência artificial, guiando a tecnologia com sensibilidade, ética e propósito. Em um cenário de algoritmos cada vez mais eficientes, ser autor continuará sendo, acima de tudo, um ato de consciência.
