quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Chinelos, cortinas de fumaça e a política em modo “clássico de domingo”


A propaganda de Ano-Novo da Havaianas, “não comece 2026 com o pé direito… comece com os dois pés”, é, no limite, um exercício clássico de criatividade publicitária. Parte de um clichê popular, desloca seu sentido e o devolve ao público em forma de convite à ação, à autonomia e ao movimento. O texto fala de corpo, de atitude, de presença inteira no mundo: “dois pés na porta, na estrada, na jaca”. Não há ali pedido de voto, menção ideológica explícita, defesa programática ou ataque a qualquer grupo político.

Ainda assim, em poucos dias, o comercial foi convertido em escândalo político. O que era uma metáfora virou “mensagem subliminar”; o que era linguagem simbólica virou “posição ideológica”. O boicote, impulsionado por figuras da direita e amplificado nas redes, rapidamente contaminou o noticiário econômico, produzindo ruído suficiente para transformar um chinelo em pauta nacional.

Quando um comercial de sandálias vira “guerra cultural”, o problema não está na publicidade. Está na política, mais precisamente, na forma como ela vem sendo praticada: empobrecida de conteúdo, dependente de conflito permanente e viciada em atenção.

A engrenagem: transformar metáfora em ofensa, e ofensa em campanha

Nada disso acontece por acaso. Existe um método, já testado, repetido e comprovadamente eficaz, no marketing político digital contemporâneo. Ele opera em etapas bastante claras.

Primeiro, recorta-se um trecho que permita uma leitura literalista, simplificada e emocionalmente explosiva. No caso, a expressão “pé direito”, arrancada do campo simbólico e jogada no terreno da disputa ideológica.

Em seguida, atribui-se intenção ao emissor. Não importa o que o texto diz, mas o que se afirma que ele “quis dizer”. A campanha passa a ser rotulada como “posicionamento político”, mesmo sem qualquer evidência concreta no conteúdo publicitário.

O terceiro passo é a convocação da base. Não se trata, de fato, de prejudicar economicamente a marca, mas de criar um ritual público de pertencimento: quem boicota prova lealdade; quem não boicota é suspeito. O consumo vira identidade política.

Por fim, o conflito é amplificado com linguagem de torcida organizada. Compra vira traição. Crítica vira “lacração”. O debate desaparece, substituído por palavras de ordem fáceis de replicar, compartilhar e performar.

Nesse contexto, a ironia publicada pelo deputado Nikolas Ferreira, “Havaianas, nem todo mundo agora vai usar”, funciona menos como opinião individual e mais como sinal de largada. É curta, memeável, emocionalmente carregada e orienta o comportamento do grupo. Não busca convencer quem discorda; busca manter coesa a própria torcida.

E aqui está o ponto central: a política tratada como futebol é uma tecnologia de engajamento. Ela não depende de verdade factual, coerência discursiva ou profundidade argumentativa. Ela depende apenas de utilidade emocional. Se gera raiva, identidade e mobilização, cumpre sua função.

O truque da agenda: barulho em cima, votação lá embaixo

A pergunta inevitável é: por que investir tanta energia em um chinelo?

Porque polarização é uma das formas mais eficientes de deslocar atenção pública. Não é necessário afirmar, nem seria intelectualmente honesto, que houve um plano deliberado para usar a Havaianas como distração de uma pauta específica. Mas é impossível ignorar o padrão estrutural: enquanto controvérsias simbólicas inflamam redes sociais, temas complexos seguem tramitando com pouco escrutínio público.

No mesmo período em que a polêmica ganhava tração, o Congresso lidava com votações orçamentárias, créditos adicionais, negociações políticas e decisões de impacto direto sobre a vida econômica do país. Assuntos que exigem leitura, contexto, paciência e, sobretudo, disposição para entender processos.

A “cortina de fumaça”, portanto, não precisa ser conspiratória. Ela pode ser funcional. É muito mais simples incendiar a opinião pública com uma guerra identitária do que explicar orçamento, comissão, emenda parlamentar ou impacto fiscal. O escândalo simbólico age como uma pauta-parasita: suga atenção, ocupa o espaço do debate e empurra temas essenciais para o rodapé da agenda pública.

O boicote como performance (e a realidade como anticlímax)

A realidade, no entanto, costuma ser menos épica do que o discurso. Os dados de consumo indicaram lojas cheias, continuidade nas vendas e ausência de um efeito concreto e duradouro do boicote. O mercado financeiro reagiu com volatilidade pontual, típica de ruídos midiáticos, mas o comportamento do consumidor revelou algo importante: a maioria não participa dessa encenação.

Isso reforça a tese central: o boicote funcionou muito mais como performance política do que como ação econômica eficaz. Ele serve para manter a base mobilizada, indignada e permanentemente em alerta. Não necessariamente para atingir o alvo declarado.

Quem ganha quando a política vira torcida?

Ganha quem controla o roteiro do conflito. Porque torcida não pede prova, pede pertencimento. E pertencimento se constrói com inimigos simples, facilmente identificáveis. Hoje é uma marca de chinelos. Amanhã, um artista, um professor, uma palavra, um gesto.

O método se repete porque funciona. Ele reduz a política a reflexo, elimina a complexidade e transforma cidadãos em espectadores passionais de um jogo que nunca termina.

A maior ironia de toda essa história é que a campanha falava justamente de estar inteiro: “dois pés”, corpo presente, ação consciente. A reação fabricada produziu o oposto: um país andando manco, com um pé preso na indignação performática e o outro escorregando para longe do que realmente importa.

Se a democracia fosse um slogan de Ano-Novo, talvez fosse este: antes de brigar por chinelo, confira a pauta. Porque enquanto a arquibancada grita, alguém segue decidindo o jogo, em silêncio. 

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Como manter a voz humana no texto gerado por IA

 


O texto publicitário e o roteiro audiovisual estão atravessando um dos momentos mais disruptivos desde a invenção da imprensa. A inteligência artificial generativa, presente em plataformas como ChatGPT, Gemini e Claude, já é capaz de redigir peças completas, adaptar linguagem a diferentes públicos e otimizar resultados em segundos. De acordo com o Relatório “State of AI in Marketing 2025” da HubSpot Research, 74% das agências de comunicação utilizam ferramentas de IA para criar conteúdo textual ou roteirizar vídeos. A velocidade e a precisão dessas tecnologias são inegáveis, mas o risco é claro: quanto mais automatizada a escrita, maior o perigo de perder aquilo que sempre diferenciou o humano da máquina, o tom, o ritmo e a emoção.

O redator e o roteirista foram, historicamente, os intérpretes da sensibilidade coletiva. São eles que captam o que uma geração sente e transformam isso em linguagem. Quando uma IA escreve, ela não “sente”: ela processa padrões linguísticos. Seu repertório vem de bilhões de textos, mas não de vivências. O resultado é coerente, mas previsível; informativo, mas raramente memorável. A pesquisa Creativity in the Age of AI, realizada pela Adobe (2024), mostra que 61% dos consumidores percebem quando um texto publicitário é “frio” ou “genérico”. Isso revela algo fundamental: mesmo em um cenário de automação, o público ainda reconhece, e valoriza, a autenticidade da voz humana.

Isso não significa que a IA seja inimiga da escrita criativa. Ela é, na verdade, um espelho ampliado: reflete nossa linguagem e devolve suas possibilidades em velocidade de código. O problema é que, sem direção humana, esse espelho deforma. Um roteirista que delega completamente a criação à máquina perde o domínio do tom narrativo; um redator que apenas edita textos automatizados transforma-se em revisor de algoritmos. O verdadeiro diferencial estará em quem souber escrever com a IA, e não por meio dela, quem a utiliza como parceira de brainstorming, mas mantém o pulso narrativo no controle.

Nas agências, essa transição já começa a se desenhar. O cargo de “AI Copy Supervisor” surge em grandes grupos publicitários, unindo competências de escrita, análise e programação. O profissional precisa dominar linguagem, contexto cultural e ética comunicacional. Ele não é substituído pela máquina; torna-se o mediador entre a criação humana e o cálculo algorítmico. Como aponta o estudo da Forbes Communications Council (2025), empresas que equilibram automação e direção humana produzem conteúdos com até 35% mais engajamento e retenção de público.

A questão ética também é inescapável. Se a IA aprende a escrever observando o que já foi escrito, há um risco constante de plágio involuntário, apropriação de estilo e replicação de vieses. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, 2024) reforça que textos gerados exclusivamente por IA não podem ser protegidos por direito autoral, justamente porque não possuem intenção criadora. Isso recoloca o roteirista e o redator no centro da responsabilidade autoral: são eles que decidem o que deve ser dito e o que deve ser silenciado, quais discursos são éticos e quais perpetuam desigualdades.

A educação superior tem um papel crucial nesse contexto. As faculdades presenciais de Publicidade e Propaganda precisam formar profissionais que unam repertório cultural e competência tecnológica. Aprender a usar IA sem compreender a história, a sociologia e a estética da comunicação é criar bons digitadores de prompts, mas não autores. O ensino presencial, com suas trocas, debates e vivências criativas, continua sendo o espaço mais fértil para o desenvolvimento da voz narrativa, algo que não se programa, apenas se aprende na convivência e na escuta.

No fim das contas, a automação não extinguirá o redator nem o roteirista. Ela apenas exigirá que sejam mais conscientes de sua própria voz. O futuro da escrita publicitária dependerá de profissionais que saibam usar a IA como ferramenta de amplificação, e não de substituição. O texto continuará sendo o território da emoção, e a emoção, até onde sabemos, ainda é uma exclusividade humana.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

A autoria criativa na era das máquinas

 


A revolução trazida pela inteligência artificial não se limita à automação de tarefas; ela toca o núcleo simbólico da publicidade: a criação. Campanhas, slogans e peças que antes dependiam exclusivamente da sensibilidade humana hoje podem ser concebidas por ferramentas generativas capazes de escrever textos, sugerir paletas de cor, criar imagens ou planejar anúncios. A dúvida inevitável surge: quem é o autor quando a IA participa da criação publicitária?

Durante décadas, a autoria publicitária foi entendida como trabalho coletivo e intelectual, mas sempre humano. Diretores de arte, redatores e estrategistas assinavam criações que uniam emoção, técnica e contexto cultural. Com o avanço da IA, o processo criativo passa a ser mediado por sistemas que aprendem padrões estéticos e semânticos a partir de milhões de exemplos. Segundo o Relatório Global de Inteligência Artificial 2025 da Deloitte Insights, cerca de 64% das agências já utilizam alguma forma de IA em suas rotinas criativas, especialmente para roteiros e campanhas digitais. O software deixou de ser apenas ferramenta e tornou-se coautor invisível.

No entanto, a IA não cria a partir do vazio. Ela reorganiza dados, combina linguagens e responde a comandos. A originalidade ainda depende da intenção humana, do publicitário que formula o briefing, escreve o prompt e interpreta o resultado. Sem esse direcionamento, a IA apenas reproduz o senso comum presente em seu treinamento. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, 2024) reforça que obras geradas unicamente por máquinas não podem ser registradas como criações originais, pois carecem de elemento essencial: a intenção autoral. Na prática, isso significa que, mesmo quando a máquina participa, a autoria ética e legal ainda pertence ao humano que a orienta.

O problema é que, na cultura contemporânea da pressa e da produtividade, esse limite tende a se embaralhar. Há quem defenda que se a máquina escreve um texto publicitário inteiro, com base em prompts genéricos, ela seria uma espécie de “autora algorítmica”. Outros argumentam que o humano continua sendo o criador, já que decide o contexto e o propósito da mensagem. Essa tensão redefine o conceito de autoria, deslocando-o da figura do “gênio criador” para a de curador cognitivo, aquele que combina inteligência humana e artificial de modo consciente e responsável.

Na prática publicitária, esse deslocamento já é perceptível. O publicitário do século XXI não apenas cria, mas programa, conduz e interpreta sistemas de IA. Ele deve entender linguagem de máquina, semântica de dados e implicações éticas da automação. A IA amplia a potência da criação, mas também desafia os limites da autoria e da propriedade intelectual. Em um ambiente em que campanhas podem ser geradas em segundos, o diferencial não será mais a velocidade, e sim a intenção estética e narrativa que o humano imprime sobre o algoritmo.

Esse novo paradigma também exige que as faculdades presenciais de Publicidade e Propaganda se reposicionem. Não basta ensinar softwares; é necessário formar pensadores capazes de compreender as implicações culturais e filosóficas da IA. Discutir autoria na era digital significa refletir sobre responsabilidade, ética e autenticidade — temas que só o ambiente acadêmico, com sua densidade crítica e interdisciplinar, consegue oferecer. A convivência entre teoria e prática, laboratório e debate, é o que permite ao estudante entender que a tecnologia é meio, não fim.

Em síntese, a IA não anula o autor, ela o desafia. A autoria publicitária do futuro será híbrida, compartilhada entre humano e máquina, mas ainda orientada pela visão humana sobre o mundo. O papel do publicitário, portanto, é permanecer como diretor criativo da inteligência artificial, guiando a tecnologia com sensibilidade, ética e propósito. Em um cenário de algoritmos cada vez mais eficientes, ser autor continuará sendo, acima de tudo, um ato de consciência.


sábado, 29 de novembro de 2025

Nova fronteira da criatividade publicitária

 


O mercado publicitário vive um de seus períodos mais desafiadores desde a popularização da internet. As ferramentas de inteligência artificial generativa, como ChatGPT, DALL·E, Gemini e Midjourney, passaram a ocupar o centro dos processos criativos. Campanhas, roteiros e imagens podem ser gerados em minutos, mas o resultado só é verdadeiramente eficaz quando há por trás um profissional capaz de formular comandos claros, estratégicos e contextualizados. Essa habilidade é conhecida como engenharia de prompts, e está transformando o modo como as agências e universidades formam seus publicitários.

A engenharia de prompts consiste em estruturar instruções para sistemas de IA, garantindo que as respostas sejam relevantes, criativas e adequadas aos objetivos de comunicação. Em outras palavras, é a tradução do pensamento publicitário para a linguagem da máquina. Segundo levantamento global da McKinsey & Company (2024), empresas que adotaram práticas sistemáticas de prompt engineering obtiveram resultados significativamente superiores em produtividade e personalização de conteúdo. O raciocínio é simples: quanto mais inteligente for o comando, mais inteligente será a resposta.

Na publicidade, essa competência tem valor estratégico. Modelos de IA já auxiliam na elaboração de headlines, segmentação de público, análise de sentimentos e simulações de campanha. No entanto, sem um profissional que saiba conduzir o diálogo com a tecnologia, o processo tende à superficialidade. O domínio da engenharia de prompts permite acelerar a produção sem abrir mão da consistência criativa, uma combinação que vem sendo considerada indispensável em agências brasileiras segundo o Relatório Global de Marketing Digital 2025 da Forbes Communications Council.

Mais do que otimizar o tempo, o domínio dessa linguagem híbrida garante personalização e relevância narrativa. O publicitário que entende como estruturar um prompt eficiente pode adaptar campanhas a diferentes perfis de audiência, explorar múltiplas vozes e gerar alternativas de layout, texto e imagem com coerência estética e discursiva. Esse processo eleva o papel humano de executor a curador, deslocando o foco da produção mecânica para a orquestração criativa.

Entretanto, é preciso cautela. A popularização da IA também ampliou os riscos de homogeneização e de perda de autenticidade comunicacional. O estudo da Digital Agency Network (2024) aponta que prompts genéricos tendem a reproduzir padrões visuais e textuais idênticos, o que pode comprometer a identidade de marca. Da mesma forma, o Relatório ABES de Tecnologia e Inovação (2025) alerta que o uso indiscriminado de modelos treinados em bases de dados estrangeiras pode gerar ruídos culturais e reforçar vieses de representação. Por isso, dominar engenharia de prompts não é apenas uma questão técnica, é também uma questão ética e cultural.

Nesse contexto, as faculdades presenciais de Publicidade e Propaganda possuem papel fundamental. São elas que proporcionam experiências práticas em laboratórios de criação, debates críticos em sala de aula e o desenvolvimento de pensamento interdisciplinar entre tecnologia, linguagem e sociedade. A vivência presencial permite que os estudantes aprendam a formular prompts com base em briefings reais, compreendendo o impacto estético, psicológico e social das decisões criativas mediadas por IA. Essa abordagem forma profissionais mais preparados para o mercado contemporâneo e menos suscetíveis à dependência cega das ferramentas.

O mercado, por sua vez, já começa a reconhecer essa diferença. De acordo com o Levantamento Global de Tendências em Marketing 2025, realizado pela Deloitte Digital, cresce a demanda por especialistas capazes de traduzir objetivos de marca em comandos técnicos para IAs generativas. As funções de “AI Content Designer” e “Prompt Engineer for Marketing” estão entre as que mais crescem nos Estados Unidos e na Europa, e começam a surgir em agências brasileiras de médio e grande porte. A tendência é que, em poucos anos, o domínio de engenharia de prompts se torne um pré-requisito profissional, assim como o domínio de softwares gráficos foi no início dos anos 2000.

Portanto, a engenharia de prompts representa não apenas uma habilidade técnica, mas uma mudança de paradigma. Ela exige do publicitário domínio de linguagem, cultura, análise e sensibilidade estética, atributos que nenhuma máquina reproduz com autenticidade. Em um cenário saturado de automação, saber o que perguntar tornou-se tão importante quanto saber o que criar. É isso que definirá o publicitário do futuro: aquele que transforma a IA em parceira criativa, não em substituta.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Inteligência artificial na publicidade brasileira

 


A publicidade brasileira entrou, definitivamente, na fase em que “usar IA” deixou de ser diferencial e passou a ser obrigação operacional. Dados recentes da Associação Brasileira das Empresas de Software mostram que o Brasil lidera os investimentos em TI e que a inteligência artificial é uma das frentes que mais puxam o crescimento do setor em 2024 e 2025, com projeção de alta de 9,5% e gasto de US$ 58,6 bilhões em 2024 (ABES, 2025). Isso significa que o ambiente empresarial, inclusive o publicitário, já tem infraestrutura e orçamento para rodar campanhas, testar criativos, segmentar públicos e analisar comportamento em tempo real com apoio de algoritmos.

O ponto é que a publicidade não lida apenas com eficiência: ela lida com sentido. E aí a IA começa a tensionar o campo. A pesquisa “O futuro das agências – 2ª ed.”, da KPMG, feita com agências brasileiras, mostra que as ferramentas mais adotadas são as de mensuração de resultados (35%) e inteligência de dados (33%), mantendo a IA no centro da relação com o cliente e da prova de performance (KPMG, 2024). Isso é ótimo para quem precisa justificar fee e mídia, mas pode levar as equipes a produzirem comunicação cada vez mais guiada pelo que o algoritmo “pede”, e nem sempre pelo que a marca deveria dizer. Quando toda campanha nasce de dashboards, corre-se o risco de cair naquilo que chamo de criatividade de repetição: formatos que funcionam, mas não inovam.

Ao mesmo tempo, estudos de ética em IA aplicados ao marketing no Brasil têm alertado para algo que o mercado costuma empurrar para depois: IA não é neutra. O trabalho de Panicachi e Cohen sobre limites éticos da IA em marketing mostra que a tecnologia amplia poder de segmentação, mas também amplia assimetrias de informação, podendo expor públicos vulneráveis a anúncios mais agressivos (PANICACHI; COHEN, 2024). O NetLab/UFRJ vem documentando, desde 2024, o uso de anúncios com IA e deepfakes de políticos e celebridades em golpes digitais, o que deixa claro que o problema já chegou à publicidade, não está na ficção (NETLAB/UFRJ, 2024; 2025). Se a IA é capaz de gerar anúncios persuasivos em segundos, ela também é capaz de espalhar desinformação publicitária com a mesma velocidade, e isso volta como risco reputacional para marcas, agências e plataformas.

Por isso, quando discutimos IA em publicidade e propaganda, não basta falar de produtividade. É preciso falar de governança de criação. Quem assina o anúncio gerado por IA? Quem responde se ele usar imagem de pessoa pública sem consentimento? Quem garante que o conjunto de dados que treinou o modelo não carrega estereótipos de gênero, raça ou classe que, em publicidade, se transformam em reforço de desigualdades? Antonio Carlos Morato, em depoimento na USP, já havia sinalizado esse ponto: publicidade é atividade regida por responsabilidade social; a entrada da IA não suspende essa responsabilidade (MORATO, 2023).

Do ponto de vista formativo, isso nos leva a um diagnóstico incômodo: cursos de Publicidade e Propaganda que ficam apenas em criação, redação e mídia sem IA vão formar profissionais ultrapassados. Mas cursos que entregam só ferramenta, sem sociologia da comunicação, sem ética da imagem, sem direito digital e sem inteligência de dados, vão formar operadores acríticos, gente que aperta botão, mas não decide se deve apertar. A melhor resposta está no meio: faculdades presenciais, com projeto pedagógico atualizado, conseguem articular laboratório, cliente real, uso de IA generativa e debate ético em sala, algo muito mais difícil de sustentar em formações rápidas e exclusivamente remotas.

Para o mercado, o recado é direto: IA não é atalho para demitir criativo, é alavanca para reposicionar o criativo como curador. Em vez de partir de uma página em branco, o redator, o diretor de arte e o planner passam a partir de 20 variações geradas por IA e escolhem, combinam, rescrevem, adaptam ao tom da marca, filtram o que é enviesado e o que é juridicamente inseguro. Isso aumenta o valor do profissional humano, não o reduz. O que reduz o valor é usar IA como se fosse estagiário infinito e gratuito.

Há ainda uma dimensão de imagem do setor. Se a publicidade brasileira quer continuar na lista das mais premiadas e influentes, não pode aceitar que modelos de IA gerem campanhas visualmente iguais às de outros países, com banco de estilos repetido e prompts genéricos. IA sem direção artística vira produção pasteurizada. IA com direção artística vira aceleração do estilo brasileiro, da narrativa local, do humor nosso, do repertório regional. É aqui que a universidade pública e privada podem fazer diferença: treinando gente que entende tanto de Lévi-Strauss quanto de ChatGPT, tanto de Conar quanto de Midjourney, tanto de recepção de público quanto de clusterização de dados.

Portanto, a IA já venceu tecnicamente, ela funciona, entrega, vende. O que ainda não venceu é a governança da IA na publicidade brasileira. E governança, nesse caso, passa por três verbos: explicitar (dizer quando o conteúdo foi gerado por IA), auditar (conferir se há vieses, ilegalidades e violações de imagem) e educar (formar profissionais capazes de discutir o que fazem). Se fizermos isso, teremos uma publicidade mais inteligente não porque usa IA, mas porque sabe por que está usando.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

O país que cobra produtividade, mas ainda não aprendeu a cuidar

 


A ampliação da licença-paternidade para até 20 dias, aprovada na Câmara pelo PL 3.935/2008, coloca o Brasil diante de uma discussão que há décadas foi empurrada para depois: como queremos que o trabalhador concilie vida familiar, saúde mental e desempenho profissional? A resposta, até agora, tem sido contraditória. Exigimos produtividade de padrão internacional, mas mantemos políticas de cuidado que pertencem a um Brasil pré-digital, pré-flexível e pré-humano.

Os números mostram o tamanho do problema. A Associação Nacional de Medicina do Trabalho reconhece que cerca de 30% dos trabalhadores brasileiros apresentam sintomas de burnout. Os afastamentos por transtornos mentais, ansiedade, depressão e estresse crônico, cresceram 134% entre 2022 e 2024, segundo levantamento da ONU Brasil. Estamos falando de quase meio milhão de pessoas afastadas só em 2024. Não é uma crise silenciosa: é uma epidemia de exaustão profissional.

Ainda assim, o país insiste em manter um modelo de parentalidade que ignora completamente a vida real das famílias. Cinco dias de licença para um pai significa, na prática, delegar a quase totalidade do cuidado a uma única pessoa, geralmente a mãe. Isso não é só injusto, é improdutivo. Diversos estudos internacionais mostram que, quando homens assumem uma parte mais ativa nos primeiros dias e semanas após o nascimento, há impactos positivos na saúde emocional da família, no desenvolvimento infantil e até na permanência das mulheres no mercado de trabalho.

É justamente essa redistribuição do cuidado que reforça a lógica econômica por trás da licença ampliada. Em países que adotaram políticas mais longas e flexíveis, as taxas de retorno ao trabalho após a parentalidade aumentaram, a rotatividade diminuiu e a produtividade cresceu de maneira mais estável. Não se trata de romantismo: trata-se de racionalidade. Investir em tempo de cuidado é mais barato do que lidar com a explosão de adoecimento mental no mercado brasileiro.

O estudo “People at Work 2023”, do ADP Research Institute, revela que 67% dos brasileiros afirmam sofrer impactos negativos do estresse nas suas rotinas de trabalho. Em setores de alta exigência, isso se traduz em atrasos, falhas, conflitos, baixa criatividade e, claro, perda de talentos. O país já paga caro por negligenciar o equilíbrio entre vida e trabalho, e continuar adiando a discussão sobre licença-paternidade só prolonga esse prejuízo.

A ampliação do benefício também enfrenta resistência baseada no argumento de que micro e pequenas empresas sofreriam com ausências prolongadas. Mas essa narrativa desconsidera que o impacto financeiro de curto prazo é menor do que o custo da rotatividade e do adoecimento. Empresas bem estruturadas conseguem planejar escalas, reorganizar funções temporariamente e ajustar rotinas, e mesmo as pequenas podem se beneficiar, no futuro, de políticas públicas que compensem parte desse período. A questão é menos sobre viabilidade e mais sobre prioridade.

É evidente que a licença de 20 dias ainda está longe do ideal observado em países que investem seriamente em políticas de cuidado. Mas é um início necessário. Um país que cresce não é o que exige mais horas, e sim o que organiza melhor essas horas. É o que entende que tempo não é gasto: é investimento.

O Brasil precisa decidir se quer continuar apostando em um modelo de trabalho sustentado pelo cansaço, pela culpa e pela precarização emocional, ou se está pronto para adotar práticas que realmente melhoram produtividade, inovação e bem-estar. Ampliar a licença-paternidade é um passo essencial nessa direção.

Porque nenhum país se torna competitivo quando metade da sua força de trabalho está exausta, e a outra metade permanece longe demais do início da vida dos próprios filhos.


sábado, 21 de junho de 2025

Renascimento da luz no inverno da alma

Quando o inverno chega e o frio se espalha, o mundo parece desacelerar. As noites ficam mais longas, os dias mais curtos, e a gente sente aquela vontade de se encolher debaixo das cobertas, com uma bebida quente na mão. Mas, no meio desse frio todo, existe uma celebração cheia de significado: o Yule, o Solstício de Inverno, comemorado em 21 de junho aqui no Hemisfério Sul. Para alguns, é só o dia mais curto do ano. Para outros, é o momento em que a esperança acende uma faísca e lembra que a luz sempre volta.

Yule é como aquele ponto de virada na história da nossa vida. Aquele momento em que, mesmo com tudo escuro, a gente sabe que algo bom está por vir. A luz não desapareceu, ela só deu uma pausa, esperando a hora certa para brilhar de novo. Em um mundo que exige produtividade o tempo todo, parar para celebrar o Yule é quase um ato de rebeldia. É dizer: "Tudo bem dar um tempo."

Essa tradição tem raízes antigas, lá nos tempos dos celtas e nórdicos, que comemoravam o retorno do sol com festas que duravam dias. Muita coisa que hoje a gente associa ao Natal, como a árvore decorada, as velas e a troca de presentes, veio dessas celebrações pagãs. Mas o Yule vai além dos enfeites e presentes; é um convite para uma renovação interna.

Quando a noite é mais longa e o frio aperta, é como se o universo dissesse: "Ei, que tal olhar pra dentro?" Quais áreas da sua vida precisam de luz? Que parte de você está pedindo um recomeço? Yule nos lembra que a escuridão não é o vilão da história; é o lugar onde as sementes da mudança começam a germinar.

Aqui no Brasil, o inverno pode não ser tão rigoroso quanto em outros lugares do mundo, mas a sensação de recolhimento é a mesma. Não temos neve cobrindo as ruas nem lareiras em todas as casas, mas temos aquele friozinho que convida a uma pausa. Yule é o momento de abraçar a calma, de encontrar aconchego nas pequenas coisas: uma xícara de chá quente, um bom livro, uma conversa gostosa com quem a gente ama.

Mais do que uma festa, Yule é uma lição de esperança. No auge da escuridão, o sol começa a voltar, devagarzinho. E isso, por si só, é um lembrete poderoso: mesmo quando tudo parece difícil, sempre existe a promessa de um novo dia. Em tempos de incertezas, quando o mundo parece cheio de sombras, Yule nos ensina que a luz é teimosa. Ela sempre encontra um jeito de voltar.

Os rituais de Yule não precisam ser complicados. Acender uma vela para simbolizar o retorno da luz, escrever seus desejos para o novo ciclo, cozinhar algo com ingredientes da estação ou simplesmente reunir a família para compartilhar histórias e esperanças. O que importa é reconhecer a beleza do momento: renascer junto com o sol.

No meio da correria do dia a dia, somos ensinados a evitar o silêncio e a temer a escuridão. Mas Yule vem para nos lembrar que é justamente nesses momentos de pausa que a gente cresce. O inverno não é um obstáculo; é uma parte necessária do ciclo da vida. Assim como a natureza precisa se recolher para florescer de novo, nós também precisamos desses momentos para nos reconectar com o que realmente importa.

Então, quando o dia 21 de junho chegar, não veja apenas o frio lá fora. Veja o calor da esperança que começa a brotar dentro de você. Yule não é apenas sobre o retorno da luz no céu, mas sobre o renascimento da luz na nossa própria alma.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

IA, ética e publicidade

A inteligência artificial já está transformando profundamente a publicidade — desde a criação de roteiros até a análise de dados, passando por imagens, vídeos, narração e interação com o consumidor. Mas, junto com as oportunidades, surgem dilemas éticos urgentes, que desafiam o mercado a pensar além da performance. Afinal, o que acontece quando a tecnologia avança mais rápido que o bom senso?

Deepfakes, manipulação de dados, falta de transparência na criação de conteúdos automatizados e dúvidas sobre autoria criativa não são mais temas de ficção científica. Estão no centro das decisões de campanhas que vão ao ar todos os dias. O uso de IA na publicidade levanta questões que tocam diretamente a confiança do público, a credibilidade das marcas e a responsabilidade social das agências.

Os deepfakes, por exemplo, permitem criar vídeos hiper-realistas com rostos e vozes de pessoas que não participaram da produção. Se, por um lado, isso abre espaço para campanhas inovadoras, por outro, pode resultar em enganos, distorção de realidade e danos à imagem de terceiros. Quando essa tecnologia é usada sem aviso claro ao público, o impacto vai além da estética: fere a ética.

Outro ponto crítico é a autoria dos conteúdos gerados por IA. Quem assina um texto criado por ChatGPT? Quem detém os direitos de uma imagem gerada por DALL·E? Quem responde por uma campanha feita sem envolvimento direto de profissionais humanos? O mercado publicitário ainda está aprendendo a lidar com essa zona cinzenta entre autoria técnica e autoria criativa.

Há também o tema da privacidade e manipulação de dados. Algoritmos que personalizam anúncios em tempo real precisam de acesso a grandes volumes de dados pessoais. Mas até que ponto os consumidores sabem (e consentem) com esse uso? Quando a publicidade ultrapassa a linha do persuasivo e entra no território do invasivo, o marketing deixa de informar para manipular.

O CONAR, Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, já vem debatendo esses pontos e reforçando a importância de campanhas que respeitem transparência, veracidade, inclusão e consentimento. Mas é preciso mais. É hora de criar códigos claros de conduta para o uso de IA em publicidade, envolvendo agências, anunciantes, desenvolvedores de tecnologia e sociedade civil.

Não se trata de frear a inovação, mas de guiar seu uso com responsabilidade. A publicidade sempre foi uma forma de linguagem social — e, como tal, precisa ser regida por valores éticos. Usar a IA sem critérios claros é como entregar um megafone para uma criança: o volume é impressionante, mas o conteúdo pode ser perigoso.

Em época de algoritmos onipresentes, é essencial lembrar que ética não se automatiza. É uma decisão consciente, coletiva e contínua. A IA pode ajudar a criar, mas só os humanos podem decidir como, quando e por que usar cada ferramenta. Esse discernimento é o que vai separar marcas inovadoras de marcas irresponsáveis — e definir o futuro da publicidade.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Fé, política e silêncios ensaiados no coração da Igreja

 

Poucos filmes contemporâneos têm coragem de adentrar os muros do Vaticano com a delicadeza de quem entende seu peso simbólico e institucional. Conclave (2024), dirigido por Edward Berger e protagonizado por um sutil e magnético Ralph Fiennes, não apenas o faz — como transforma o silêncio ritualístico da Igreja em terreno fértil para o suspense político. Mas, como toda boa narrativa de poder, o filme revela tanto quanto esconde. E é aí que mora sua força — e sua limitação.

Baseado no romance de Robert Harris, Conclave acompanha o cardeal Lawrence enquanto este supervisiona o processo de escolha do novo papa após a morte do pontífice. À primeira vista, trata-se de um thriller eclesiástico, quase um House of Cards entre colunas de mármore. Mas o que o filme realmente revela é o choque entre tradição e verdade, entre o peso da fé e os jogos de influência de uma instituição que, apesar de espiritual, é também profundamente política.

O mérito de Berger está em transformar um processo fechado e cerimonial — o conclave — em um espaço narrativo tenso, onde olhares valem mais que palavras e a liturgia esconde disputas internas. A cinematografia austera de Stéphane Fontaine contribui para esse clima claustrofóbico, e a trilha sonora de Volker Bertelmann acentua a sensação de urgência silenciosa que atravessa o filme.

Mas é Ralph Fiennes quem carrega o coração do enredo. Seu cardeal Lawrence é, ao mesmo tempo, servo fiel e sujeito em crise. E sua performance contida, quase litúrgica, expressa a complexidade de quem está diante de um sistema maior do que qualquer convicção pessoal. O elenco de apoio, com nomes como Stanley Tucci e Isabella Rossellini, reforça a densidade dramática, dando voz a diferentes facetas da hierarquia católica.

No entanto, Conclave também simplifica. Ao dramatizar alguns conflitos e moralizar escolhas com certo maniqueísmo, o filme perde a chance de mergulhar nas camadas mais espessas da Igreja — aquelas onde fé, cultura, política e poder se entrelaçam de forma inseparável. É um risco calculado, talvez necessário para manter o ritmo cinematográfico, mas que enfraquece parte da crítica possível.

Ainda assim, o filme acerta ao levantar uma pergunta que ecoa muito além das paredes do Vaticano: quem tem o direito de decidir o futuro espiritual de bilhões de pessoas? E com base em que critérios? O conclave, afinal, é também um espelho do nosso tempo: um ritual antigo tentando permanecer relevante em uma era de rupturas e incertezas.

Conclave é um filme necessário. Porque nos lembra que instituições, por mais sagradas que sejam, são feitas de pessoas — e pessoas, com todas as suas falhas e esperanças, também têm fé. Não é um filme sobre a Igreja. É um filme sobre o poder. E o silêncio.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Quando a repetição ofusca a maré da originalidade

O oceano já não chama com a mesma força. Oito anos depois do impacto cultural e emocional de Moana (2016), a Disney retorna com uma continuação que, embora visualmente esplêndida, parece presa ao formato que tanto busca renovar. Moana 2 é uma experiência agridoce: entrega técnica impecável, mas escorrega justamente no que fez do primeiro filme um marco — a autenticidade da jornada, a potência simbólica da protagonista e a originalidade narrativa.

Desta vez, Moana, agora mais velha e experiente, parte em uma nova missão para restaurar a ilha perdida de Motufetu. A premissa, à primeira vista, parece promissora. No entanto, a execução revela uma história que se aproxima mais da estrutura episódica de uma série do que de um longa-metragem coeso. Há momentos tocantes, sim, mas também muitos atalhos, diálogos apressados e desenvolvimentos pouco explorados. A aventura segue, mas sem o mesmo brilho da descoberta — parece que, desta vez, o oceano já conhece demais os caminhos.

Um dos maiores pontos de comparação inevitável está na trilha sonora. Em 2016, as músicas de Lin-Manuel Miranda foram responsáveis por transformar emoções em hinos geracionais. Quem não se arrepiou com “How Far I’ll Go”? Em Moana 2, as canções compostas por Abigail Barlow e Emily Bear são funcionais, mas não memoráveis. “Get Lost” é um destaque isolado em meio a uma trilha que não consegue, desta vez, contar a história por si só — uma falha significativa em um musical de animação.

Ainda assim, é preciso reconhecer os méritos da sequência. A animação atinge um novo nível de detalhamento, com paisagens que exaltam a cultura polinésia e cenas de tirar o fôlego. A representatividade continua sendo um trunfo importante, mantendo viva a valorização de um imaginário que por muito tempo foi apagado ou estereotipado no cinema mainstream. Nesse sentido, Moana 2 cumpre uma função simbólica poderosa: a de afirmar culturas ancestrais como protagonistas da própria narrativa.

Mas a pergunta que ecoa é: precisava de uma continuação? Ou melhor, essa continuação precisava ser feita assim? Ao seguir a lógica da franquia segura, a Disney parece ter escolhido o caminho menos arriscado — e, portanto, menos inventivo. Moana merecia uma nova jornada que ampliasse seu universo não só em geografia, mas em profundidade.

Moana 2 não é um fracasso, longe disso. É um filme bonito, bem-intencionado e tecnicamente admirável. Mas falta-lhe alma de travessia. Falta a surpresa da primeira vez. Falta a coragem de navegar onde a maré não leva por si só. Talvez seja hora de lembrar o que o oceano nos ensinou: que é preciso ousar sair do porto, mesmo que o horizonte pareça distante.

domingo, 11 de maio de 2025

Mãe é força ancestral

 

Nem toda mãe é de sangue — mas toda mãe é portal. Na Wicca, caminho espiritual que honra a natureza e seus ciclos, a figura materna não é apenas biológica: ela é simbólica, arquetípica, energética. Ela representa a vida em sua plenitude, a nutrição, a proteção e o poder de criar, sustentar e transformar. Em um mundo que tantas vezes reduz a maternidade ao papel doméstico e ao laço genético, a bruxaria amplia: toda mulher que acolhe, protege, ensina e transforma carrega em si a centelha da Deusa Mãe.

Na Tradição Wiccana, a Deusa é tríplice: Donzela, Mãe e Anciã — representando as fases da lua e os ciclos da vida. A Mãe, associada à Lua Cheia, é o aspecto da fertilidade, do crescimento e do amor incondicional. Ela é a Terra em seu ápice de abundância, a força que gera e nutre. Mas essa maternidade não está presa ao útero: ela vive no coração, na intuição, nos gestos de cuidado e nas palavras que curam.

Muitas pessoas que seguem o caminho da bruxaria — especialmente mulheres — encontram figuras maternas fora da linhagem sanguínea. São mães de alma, mães de escolha, mães de caminhada. São bruxas mais velhas que iniciam, que amparam, que guiam com paciência. São amigas que se tornam fonte, irmãs que viram chão, parceiras que iluminam. A maternidade, na Wicca, é sobre energia. Sobre presença. Sobre vínculo.

A Deusa Mãe ensina que o maternar é um estado de consciência, e não uma função social. Ela se manifesta nas mulheres que se recusam a repetir padrões de dor, nas que criam comunidades, nas que curam com as mãos e com a palavra, nas que semeiam liberdade nos caminhos de outras. Ela se revela na mulher que acolhe a própria criança interior, que honra seus ciclos, que protege sem oprimir e ama sem possuir.

Em rituais da Roda do Ano — como Beltane, Lammas e Ostara — celebramos a fertilidade da terra, mas também a fertilidade de ideias, projetos e afetos. A mãe é aquela que dá forma ao invisível. Que transforma energia em realidade. Que faz da escuta um altar e da palavra, um feitiço. No altar da bruxa, a imagem da Deusa Mãe nos lembra que criar é um ato mágico, e que toda maternidade, seja ela literal ou simbólica, é sagrada.

Falar de mãe, portanto, não é falar apenas da mulher que nos pariu, mas da que nos acolheu, nos ensinou a olhar para a lua e a confiar no tempo. É lembrar que há muitas formas de gestar e parir — uma ideia, um vínculo, uma cura, um caminho. Na Wicca, aprendemos que toda forma de cuidado é também uma forma de magia. E toda mulher que cuida — de si, dos outros, do mundo — carrega em si a Deusa.

Nem toda mãe tem filhos, mas toda mãe tem um poder: o de gerar transformação. E essa é, talvez, a essência mais profunda da bruxaria.

sábado, 10 de maio de 2025

A construção da emoção

 

O Dia das Mães é, para o mercado publicitário, uma vitrine de sentimentos. Mas transformar emoção em estratégia exige muito mais do que frases bonitas ou imagens tocantes: requer domínio técnico da narrativa. O desafio é construir histórias que não apenas falem da maternidade, mas que ressoem com as múltiplas realidades e afetos que ela representa — e isso se faz com método, sensibilidade e repertório.

Narrativas eficazes são construídas com base em estruturas que organizam tempo, personagem, conflito e resolução. Como destaca Roland Barthes, toda narrativa parte de uma lógica de significação: um discurso que carrega sentido porque responde a um desejo ou expectativa social. No caso das campanhas do Dia das Mães, esse desejo costuma se materializar em vínculos, reconhecimento, gratidão ou afeto. Mas, para que funcione, a emoção precisa ser verdadeira e culturalmente situada.

Uma boa campanha começa com a escuta do real: que tipo de mãe se deseja representar? Existe um perfil dominante? Há espaço para pluralidade? Trabalhos como o de Christian Salmon, em Storytelling: a máquina de fabricar histórias e formatar mentes, mostram como a narrativa publicitária pode tanto ampliar imaginários quanto reproduzir estereótipos. Em datas como o Dia das Mães, esse risco é ainda maior — afinal, nem toda mãe é sorridente, branca, heteronormativa e de classe média.

É nesse ponto que entra a curadoria do conflito emocional. Não há história sem tensão — e, no caso da maternidade, os conflitos são ricos, variados e muitas vezes silenciados. Quando marcas como O Boticário apostam em campanhas como #ATormentaPassa, o que está sendo feito é a inserção do público em um espaço de empatia. Mostrar a dor, a dúvida, o cansaço, o estranhamento — e não apenas o abraço e o presente — torna a narrativa mais densa e verdadeira.

Outra técnica importante é o uso do arco do herói emocional, adaptado à vida comum. A mãe, nesse caso, não é um arquétipo idealizado, mas uma figura com jornada, desafios e conquistas. Mostrar a mãe que trabalha, que chora escondido, que erra, que aprende com o filho, que encontra força onde não sabia ter — tudo isso gera identificação e abertura emocional. O storytelling de marca precisa encontrar essas camadas.

Há também o papel essencial da linguagem visual e sonora na construção da emoção. Planos fechados, luz suave, silêncios bem posicionados, trilha emocional, texto que evoca memórias... Tudo isso contribui para o impacto sensível da campanha. A estética deve dialogar com a estrutura narrativa, não ser apenas uma moldura bonita. Como ensina a semiótica publicitária, forma e conteúdo precisam significar juntos.

Por fim, há o aspecto ético: emocionar não é manipular. O consumidor contemporâneo reconhece a diferença entre a emoção autêntica e a emoção forçada. Uma campanha só emociona de verdade quando parte de um lugar honesto — quando a marca escolhe não falar “sobre” o consumidor, mas “com” ele. Ao abrir espaço para histórias reais, diversidade e escuta afetiva, a publicidade deixa de ser vitrine e passa a ser espelho.

No Dia das Mães — uma data repleta de simbolismos e disputas afetivas —, criar campanhas que emocionem não é um capricho criativo. É uma escolha estratégica, técnica e ética. Porque, quando a narrativa é bem construída, ela toca. E quando toca, permanece.


quarta-feira, 7 de maio de 2025

Narrativas que tocam o coração

 

O Dia das Mães é uma das datas mais significativas para o comércio brasileiro, movimentando bilhões de reais anualmente. Em 2024, por exemplo, cerca de 128 milhões de consumidores compraram presentes, com um gasto médio de R$ 258 por pessoa, segundo a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL). A movimentação total do varejo ultrapassou os R$ 40 bilhões — um impacto que reforça a importância estratégica da data para marcas de todos os portes.

Mas diante de um mercado saturado de ofertas, as campanhas que realmente se destacam são aquelas que conseguem estabelecer uma conexão emocional genuína com o público. Mais do que vender produtos, elas contam histórias que ressoam com experiências reais, afetos, dilemas e memórias familiares. E é justamente essa abordagem que vem se fortalecendo nas campanhas de 2024.

O Boticário, por exemplo, apostou na campanha #ATormentaPassa, um curta-metragem que aborda os desafios emocionais vividos por mães de adolescentes. A proposta foge do clichê da maternidade idealizada e entra em um terreno mais profundo, sensível e verdadeiro. Essa humanização da narrativa permite que o público se identifique com a marca, criando um vínculo afetivo que vai além da relação comercial.

A ONG Gerando Falcões também lançou uma campanha que compartilha histórias reais de mães da periferia, destacando suas lutas diárias e conquistas. Com isso, a publicidade ganha potência social e contribui para representar a pluralidade das maternidades existentes no Brasil. Esse tipo de iniciativa responde a uma expectativa real: segundo pesquisa da Globo em parceria com o Instituto Locomotiva, 68% dos consumidores esperam que marcas representem diferentes perfis de famílias e maternidades em suas comunicações.

Além disso, campanhas com apelo emocional têm desempenho significativamente superior: dados da Think with Google mostram que narrativas que exploram emoções têm 76% mais chances de gerar engajamento e memorização de marca. Isso reforça que emoção não é apenas estética — é estratégia.

Outra prática que vem crescendo é o uso de conteúdo gerado por usuários (UGC) e a valorização de influenciadoras maternas reais. Ao incentivar mães a compartilharem suas próprias histórias e celebrações, as marcas se tornam mais acessíveis, gerando identificação, amplificação orgânica e reputação positiva. Esse tipo de campanha se espalha não só pela força da mensagem, mas pela autenticidade de quem a vive.

Num cenário onde o público é cada vez mais exigente, consciente e emocionalmente atento, a publicidade precisa ir além do roteiro ensaiado. O desafio é contar histórias que toquem o coração, mas também reconheçam o mundo real das mães brasileiras, com suas múltiplas faces, jornadas e contextos. Porque vender pode até ser o objetivo comercial — mas tocar é o verdadeiro diferencial da marca.

O Dia das Mães, portanto, não deve ser apenas uma oportunidade de impulsionar vendas, mas de fortalecer vínculos com narrativas que inspirem, acolham e representem. Campanhas assim não só vendem: elas permanecem.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Opinião não é fato


Vivemos em uma era em que a frase “eu tenho direito à minha opinião” se tornou escudo para todo tipo de afirmação — das mais legítimas às mais perigosas. Mas é preciso lembrar: sim, todos têm direito à sua opinião. Mas nenhuma opinião tem o direito de ser tratada como fato sem ser verificada. E essa confusão não é apenas um erro conceitual — é um risco à convivência democrática, ao jornalismo, à ciência e ao próprio pensamento crítico.

Opinião é uma interpretação, uma leitura subjetiva da realidade. Ela pode ser baseada em valores, crenças, preferências, experiências. Já o fato é algo que, por definição, aconteceu ou acontece, e que pode ser comprovado por evidência confiável. O problema começa quando essa fronteira é ignorada — seja nas redes sociais, nas conversas de bar ou nos discursos de figuras públicas.

Dizer, por exemplo, que “vacinas causam doenças” não é uma opinião — é uma afirmação factual falsa, já desmentida pela ciência. Achar que “as vacinas foram criadas muito rápido” pode até ser uma dúvida legítima, mas transformá-la em certeza sem base é desinformação. O mesmo vale para o clima, a política, a história e tantas outras áreas em que opiniões sem respaldo ganham status de “verdade alternativa”.

Essa confusão também se vê em ambientes acadêmicos e jornalísticos. Uma reportagem de qualidade não é espaço para achismos — exige fontes, checagem, contextualização. Já um artigo de opinião, como este, deve deixar claro desde o início que se trata de um ponto de vista, ainda que embasado em dados. Ética e responsabilidade passam por reconhecer a natureza do que se diz.

A internet potencializou esse dilema: todos podem se expressar, mas nem todos compreendem que informar é diferente de opinar. E o pior: algoritmos premiam engajamento, não precisão. Quanto mais polêmica, mais alcance. E quanto mais alcance, mais difícil distinguir o que é verdade do que é apenas “o que eu acho”.

Isso não significa que opiniões devam ser silenciadas — pelo contrário. Opinar é essencial para o debate democrático. Mas é justamente por isso que precisamos educar para a diferença entre opinar e informar. Precisamos de cidadãos que saibam argumentar com base, duvidar com método e reconhecer quando é hora de ouvir os dados — e não apenas os sentimentos.

A escola, o jornalismo e a própria cultura digital precisam promover esse discernimento. Porque a liberdade de expressão só é plena quando acompanhada da responsabilidade de não distorcer os fatos para acomodar convicções. O mundo já tem opiniões demais. O que falta, muitas vezes, é humildade para mudar de opinião diante dos fatos.

E isso, sim, é sinal de maturidade.

domingo, 4 de maio de 2025

Uma voz de carne e osso no altar da humanidade

 

A morte de Papa Francisco marca o fim de um papado que não se conteve nos muros do Vaticano. Sua liderança, mais do que institucional, foi humana — e por isso, profundamente transformadora. Se, por séculos, a figura papal foi símbolo de autoridade dogmática e hierárquica, Jorge Mario Bergoglio deslocou o centro de gravidade da fé católica para o campo do cotidiano, da escuta e da misericórdia. E esse deslocamento incomodou, mas também curou.

Francisco não foi o primeiro papa a falar de justiça social, mas foi o primeiro em muito tempo a falar como alguém que a sentiu na pele. Seu discurso não vinha do púlpito — vinha da rua. Suas palavras, mesmo quando escritas em linguagem oficial, chegavam ao mundo com a simplicidade de um vizinho que aconselha, de um avô que acolhe, de um amigo que não julga antes de entender. Seu famoso “Quem sou eu para julgar?”, ao se referir a pessoas LGBTQIA+, não foi apenas uma frase — foi um marco linguístico, político e espiritual na história recente da Igreja.

Diferentemente de João Paulo II, cuja eloquência midiática sustentou um papado profundamente conservador, e de Bento XVI, cujo academicismo isolou sua voz em um tempo que clamava por acessibilidade, Francisco trouxe a dúvida para o centro da santidade. E isso o aproximou de muitos — e o afastou de outros. Sua fé não era a da infalibilidade: era a da escuta, da tentativa, da contradição humana. Por isso, tantos discursos seus reverberaram fora do universo religioso, tocando pessoas que não se consideram católicas, mas que encontraram ali algo raro: compaixão estruturada como prática política.

Seus posicionamentos sobre o meio ambiente, os migrantes, os pobres e a economia predatória colocaram a Igreja em rota de colisão com os interesses mais poderosos do mundo. Ele não apenas apontava erros estruturais — ele nomeava a omissão como pecado coletivo. E ao fazer isso, humanizou não só os “maus comportamentos”, que deixou de demonizar, mas também os “bons”, que deixou de romantizar. Amar o próximo, para Francisco, nunca foi um mandamento abstrato — foi ação. E isso fez da ética cristã algo radicalmente atual.

A crítica a sua postura existe — e deve existir. Houve omissões, recuos, silêncios. Sua tentativa de reformar a Cúria encontrou resistência feroz. E muitos temas — como a ordenação de mulheres, o aborto e o celibato — permaneceram intocados ou apenas sugeridos em sutilezas. Mas ainda assim, seu maior feito talvez tenha sido lembrar que o papa é um ser humano, e não um dogma vestido de branco.

Ao contrário de papados que pareciam inatingíveis, Francisco era visivelmente tocado pelas dores do mundo. Chorava. Tremia. Cambaleava. E nesse gesto, o gesto de alguém que não tem todas as respostas, ele nos ensinou que a fé não é sobre perfeição — é sobre presença. Sobre estar ali, junto. Mesmo quando o outro não pensa, ama ou crê como você.

Papa Francisco nos mostrou que é possível ser líder sem ser autoritário, ser espiritual sem ser alienado, ser firme sem ser rígido. Seu legado, mais do que doutrinal, é existencial. E por isso, continuará ecoando muito além da cátedra de Pedro. Onde houver alguém escolhendo o amor antes do julgamento, a escuta antes do grito, o gesto antes do dogma — ali, sua voz ainda viverá.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Entre blocos e bilheterias

 

Adaptar um jogo como Minecraft para o cinema é, ao mesmo tempo, uma tarefa ambiciosa e um desafio conceitual. Não se trata de um enredo clássico a ser traduzido para as telas, mas de um universo em aberto, onde a narrativa é criada pelo próprio jogador. Um Filme Minecraft (2025), dirigido por Jared Hess e estrelado por Jason Momoa e Jack Black, tenta contornar esse vácuo criativo com uma história genérica de heróis deslocados em busca do caminho de casa. O resultado? Um filme que diverte, mas pouco constrói — ao menos no plano narrativo.

Minecraft é, acima de tudo, um símbolo de liberdade. O jogador cria, destrói, imagina. É um espaço de autoria e expressão. O filme, por outro lado, recorre à velha fórmula hollywoodiana do grupo improvável que precisa aprender a trabalhar em equipe. A estética cúbica está ali, os mobs conhecidos também. Mas a alma do jogo — a experimentação, a ausência de roteiro, a magia da descoberta — se dilui em piadas fáceis e diálogos superficiais.

Jack Black, como Steve, entrega carisma e timing cômico, talvez o elemento mais genuinamente divertido do longa. Jason Momoa, em um papel mais contido do que de costume, cumpre a função de herói-relutante, mas sem grandes destaques. A química entre os personagens é funcional, mas o enredo não permite grandes mergulhos emocionais. E é aí que reside o maior problema: em um universo que poderia inspirar infinitas possibilidades, a história opta pela previsibilidade.

Ainda assim, Um Filme Minecraft cumpre seu papel comercial com louvor. Atinge o público infantojuvenil com um ritmo ágil e visual colorido, e arrecadou mais de 800 milhões de dólares mundialmente. Mas essa performance não deve ser confundida com profundidade. O sucesso de bilheteria não invalida a pergunta essencial: o que estamos contando, quando escolhemos contar histórias baseadas em produtos que são, por essência, sobre criação livre?

O filme poderia ter ido além, apostando em uma narrativa mais simbólica sobre criatividade, identidade ou até mesmo isolamento digital — temas que fazem parte da experiência Minecraft. Ao invés disso, optou pelo conforto de um roteiro enlatado que, embora divertido, esvazia o potencial transformador da obra original.

Um Filme Minecraft não é um fracasso — é um reflexo. Reflete a tendência atual do cinema em transformar tudo em franquia, tudo em IP explorável, tudo em produto vendável. E, nesse reflexo, cabe ao espectador decidir se está apenas sendo entretido… ou se está, mais uma vez, vendo uma boa ideia ser empacotada até perder sua força.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Vilãs em looping

 




Elas têm olhos maquiados, risadas calculadas, frases cortantes e um guarda-roupa impecável. Elas são perigosas, ambiciosas, sedutoras — e, quase sempre, infelizes. Nas novelas brasileiras, as vilãs se tornaram ícones da dramaturgia, mas também repetem um modelo que diz muito sobre como a sociedade enxerga mulheres que saem do roteiro esperado. E essa repetição, por mais envolvente que seja na ficção, revela um padrão que limita, simplifica e — muitas vezes — reforça preconceitos.

De Odete Roitman a Carminha, de Nazaré a Flora, o Brasil é um celeiro de vilãs memoráveis. Mas por trás da genialidade de suas interpretações, há uma fórmula que quase nunca falha: são mulheres com sede de poder, que manipulam, mentem, enlouquecem e, ao fim, caem — castigadas pela narrativa que exige redenção ou destruição. Vilãs raramente saem ilesas. E quase nunca são humanizadas.

O problema não está em haver vilãs — o conflito é o motor da narrativa. O problema está no encarceramento simbólico de determinadas características femininas nesses papéis. Ambição? Vilã. Autonomia? Vilã. Sexualidade ativa? Vilã. Mulheres que se recusam a cuidar, servir, ceder? Vilãs. Ou seja: comportamentos considerados socialmente “impróprios” para o feminino são constantemente atribuídos a personagens antagonistas. E isso educa. Isso molda o olhar coletivo.

Enquanto isso, as heroínas são passivas, sofredoras, resilientes, quase santificadas — a mulher “boa” da novela ainda é aquela que aguenta tudo calada, que perdoa traições, que vive em função do outro. O contraste entre essas duas representações constrói uma pedagogia silenciosa que premia a submissão e pune a ousadia.

Essa lógica não apenas reforça estereótipos, como empobrece a narrativa. A boa ficção é feita de personagens complexas, contraditórias, humanas. Mas quando a vilania se torna um receptáculo de tudo o que é reprimido na mulher real, a personagem deixa de ser rica e passa a ser sintoma. Quantas vilãs das novelas brasileiras têm desenvolvimento psicológico real, dilemas internos, arcos de autoconhecimento? Quase nenhuma. São sombras que surgem prontas — e, mais cedo ou mais tarde, morrem envenenadas por sua própria maldade.

Nos últimos anos, houve tentativas tímidas de subverter esse padrão, especialmente com a ascensão de narrativas feministas nas redes sociais. Mas ainda é pouco. A dramaturgia brasileira precisa urgentemente abrir espaço para outras mulheres: mulheres que erram e aprendem, que têm ambição sem serem demonizadas, que vivem o desejo sem punição moral. Mulheres que não sejam santas nem bruxas, apenas pessoas.

As novelas têm o poder de formar imaginários. Durante décadas, ensinaram o Brasil a odiar mulheres poderosas, independentes ou sexualmente livres. Está na hora de mudar o roteiro. De permitir que as mulheres da ficção sejam tão complexas quanto as da vida real. De dar fim ao ciclo onde vilania é só mais uma máscara que o machismo veste.


O rádio ainda fala com o Brasil

 

Em tempos de algoritmos, inteligência artificial e feeds intermináveis, pode parecer surpreendente dizer que o rádio continua sendo uma das mídias mais relevantes do país. Mas é verdade — e os números provam. Em 2025, o rádio segue vivo, pulsando nas casas, nos carros, nos comércios e, principalmente, na rotina das cidades brasileiras. Para a publicidade regional, o rádio não é apenas uma alternativa: é uma ponte direta com o consumidor.

Segundo dados da Kantar IBOPE Media, 83% da população brasileira ainda ouve rádio diariamente, com uma média de quase quatro horas de escuta por dia. Em um país com tantas realidades sobrepostas, essa capilaridade não é apenas impressionante — é estratégica. Enquanto o digital exige cliques, algoritmos e impulsionamento, o rádio exige apenas um botão. E ele continua sendo ligado, todos os dias, por milhões de brasileiros.

Mas não é só sobre audiência. O rádio carrega algo que nenhuma mídia programática consegue simular: confiança. De acordo com pesquisa do Ministério das Comunicações, o rádio lidera o índice de credibilidade entre os meios de comunicação, com 81% da confiança do público. Esse dado não pode ser ignorado por quem planeja campanhas que precisam, antes de tudo, gerar vínculo e reputação.

No universo da publicidade local, essa confiança se transforma em resultado. Uma pesquisa publicada pelo portal Negócios SC mostra que campanhas veiculadas no rádio aumentam em até 49% o reconhecimento da marca, geram crescimento quatro vezes mais rápido no mercado e aumentam em 32% a confiança na marca anunciada. Para o comércio de bairro, a loja regional ou o serviço local, isso é ouro.

Mais do que alcance, o rádio oferece proximidade. Ele fala a língua da comunidade, cita ruas que o ouvinte percorre, comenta sobre o clima que está acontecendo do lado de fora da janela. Quando um anúncio entra nesse contexto, ele não é apenas escutado — ele é percebido como parte da vida cotidiana. Nas cidades médias brasileiras, o rádio ainda é companhia, fonte de informação e referência de credibilidade.

E se engana quem acha que o rádio parou no tempo. O consumo via internet vem crescendo, com 12% dos ouvintes acessando as rádios online, principalmente pelo celular. Essa migração suave para o digital amplia o alcance das campanhas sem perder o vínculo afetivo. A rádio vai onde o público está — do carro à cozinha, do celular ao alto-falante da padaria.

Além disso, o rádio tem um trunfo que muitas plataformas digitais ainda tentam imitar: a voz. A locução, a entonação e o sotaque carregam humanidade, regionalismo e espontaneidade. Uma voz familiar no horário do almoço ou na hora de abrir o comércio é mais do que um som de fundo — é um laço afetivo. E essa voz pode vender, informar e emocionar.

Para além dos dados, há um fator intangível que faz do rádio um canal tão eficaz: ele humaniza a publicidade. A locução, a trilha, o improviso — tudo contribui para que a mensagem soe próxima, real, confiável. Isso é especialmente poderoso para campanhas de conscientização, ações comunitárias ou ofertas que precisam gerar resposta imediata. É o tipo de mídia que mobiliza, porque se mistura à rotina.

O rádio também oferece vantagens técnicas. O custo de produção e veiculação de um spot é consideravelmente menor do que o de uma campanha televisiva ou de um conjunto de anúncios digitais segmentados. Isso permite que pequenos negócios — que muitas vezes não têm verba para grandes ações — possam ter presença constante no ar, falando diretamente com seu público-alvo.

Outro ponto relevante: a diversidade de formatos no rádio permite que a publicidade seja inserida de maneira orgânica, seja nos intervalos, nas vinhetas, nos quadros patrocinados ou até mesmo em conteúdos integrados com o estilo do programa. Isso amplia as possibilidades de personalização e aumenta o engajamento do ouvinte.

É claro que a publicidade contemporânea exige multicanais. Mas ao lado das redes sociais, do Instagram patrocinado e do tráfego pago, o rádio cumpre um papel essencial: ele fala com quem talvez não esteja online, mas está plenamente conectado com o que importa no seu dia a dia. Ele entra nas casas sem pedir senha e circula pelas ruas com autoridade afetiva.

O rádio também educa, entretém e acompanha. Durante crises, como em enchentes, apagões ou emergências locais, ele é um dos primeiros a informar com agilidade e responsabilidade. Esse papel de serviço público, aliado à sua função de entretenimento e comunicação de massa, o transforma numa das ferramentas mais completas à disposição do marketing regional e das ações públicas.

Se o objetivo da publicidade é criar vínculos, despertar memórias e mover ações, o rádio continua sendo um dos meios mais sinceros para fazer isso. Em cidades brasileiras onde o afeto ainda é parte da rotina e o comércio local pulsa, é hora de escutar o rádio não só como meio, mas como estratégia — e respeitar o que ele ainda tem a dizer.

Porque, no fim das contas, o rádio ainda fala com o Brasil. E quem tem algo a dizer — ou a vender — deveria prestar atenção.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Quando a escuridão fala

 

Enquanto muitos estão pensando em festas de maio, aqui no Hemisfério Sul, uma celebração silenciosa e ancestral ecoa sob a luz suave da lua: o Samhain, o Ano Novo das Bruxas. Celebrado entre 30 de abril e 1º de maio, esse sabá não é apenas uma data no calendário wiccano; é um convite para pausar, respirar fundo e mergulhar dentro de si. É o momento de se conectar com nossos ancestrais, honrar o que passou e preparar o coração para o novo que virá.

Ao contrário da imagem clichê das bruxas voando em vassouras ou mexendo caldeirões borbulhantes, Samhain é uma celebração de silêncio e profundidade. Marca o fim do ciclo da colheita e o início do período mais escuro do ano, quando a natureza repousa, as folhas caem e a terra, silenciosa, se prepara. Dizem que é nessa época que o véu entre o mundo dos vivos e o dos mortos fica mais fino. É quando sentimos, quase como um sussurro, a presença daqueles que vieram antes de nós. É tempo de lembrar, de agradecer, de aprender com as histórias que eles deixaram.

Mas Samhain não é só sobre saudade ou despedidas. É também um convite para o autoconhecimento. Em meio à escuridão, encontramos um espaço para olhar para dentro, para refletir sobre o que precisamos deixar ir e o que queremos carregar conosco. Quais hábitos ou relações já não nos servem mais? Que sonhos precisam ser plantados agora para florescerem quando a luz voltar?

Aqui no Brasil, onde as estações não são tão marcadas quanto em outros lugares, é fácil se desconectar desse ciclo natural. Mas, se pararmos para observar, percebemos que a natureza ao nosso redor também muda. As folhas secam, o clima esfria, e o ritmo da vida diminui. E nós? Quantas vezes nos sentimos fora de compasso, tentando acompanhar um ritmo que não é o nosso? Samhain é o momento de reconectar com o ritmo da natureza e, principalmente, com o nosso próprio ritmo interno.

Na cultura popular, Samhain muitas vezes se mistura com o Halloween, aquele festival de fantasias e doces celebrado em 31 de outubro no Hemisfério Norte. Mas, para nós aqui no Sul, faz mais sentido ajustar essa roda e celebrar o fim do ciclo no nosso outono. Afinal, é agora que a natureza também começa a se recolher, preparando-se para o inverno.

Você não precisa de grandes rituais para sentir a energia dessa data. Pequenos gestos fazem toda a diferença: acender uma vela em homenagem aos seus ancestrais, escrever sobre o que você deseja deixar para trás, meditar sobre as lições que a vida trouxe no último ano ou, simplesmente, silenciar o mundo ao seu redor e ouvir sua própria voz. Samhain é sobre isso: encontrar significado no simples, no cotidiano.

Vivemos em um mundo que nos empurra constantemente para a pressa, para a produtividade desenfreada, para o "próximo". Mas parar para refletir, para honrar o que foi, é um ato de coragem. Samhain nos ensina que o fim não é algo a ser temido; é uma parte essencial da jornada. Porque é no espaço deixado pelo que se foi que o novo encontra lugar para nascer.

Então, enquanto o calendário comum marca mais um dia qualquer, aqueles que celebram o Samhain sabem: às vezes, é preciso abraçar a escuridão para descobrir onde realmente está a luz.